terça-feira, 11 de setembro de 2007

O Final Acachapante – parte II

Ou Agora é o Fim Mesmo

- Desde o princípio, a solução desse caso foi complicada por dois fatores preponderantes. Primeiramente, o tempo. Meu primo, assim como a maioria de vocês, tinha motivos para temer uma investigação policial adequada. Um belo grupo de patifes se reuniu aqui esta noite: empresários, jogadores de pôquer, delinqüentes juvenis... Todos com motivos de sobra para liquidar o velho. Exatamente o segundo fator complicante: o excesso de suspeitos.

- Mas, detetive Mesquita, onde o senhor aprendeu a falar assim?!...

- Por favor, agora não. Vejam bem, nós, detetives, usamos muitas vezes de um critério básico da lógica para chegar ao fundo de um mistério: eliminadas todas as impossibilidades, a solução que se apresenta, por mais inverossímil que pareça, é a verdade.

- Larga de ser burro, Neneco. Inverossímil é... opa. Nada não.

- E aí? Vou poder desvendar o crime em grande estilo ou vocês vão ficar me interrompendo?

- Mal aê. Prossiga, por favor.

- Pois bem, nesse caso muitas soluções pareciam perfeitamente possíveis. Todos pareciam ter tido a oportunidade adequada para cometer o crime. Mais ainda, muitos pareciam se orgulhar de terem chegado perto de matá-lo. Voltemos um instante ao problema da falta de tempo. Como resolver o caso antes de se fazer uma autópsia no cadáver? Como prescindir dos delicados procedimentos de revista do local do crime em busca de pistas? Eu teria que achar o assassino em poucas horas, usando para isso apenas minha capacidade dedutiva. A enormidade da tarefa que se me apresentava a princípio me assustou.

- Bem se vê...

- Os depoimentos, além de me darem uma visão mais clara de quem era o velho e seus supostos amigos, abriram na minha mente privilegiada novos caminhos para a solução da charada. Quem teria a força de matar um homem com apenas uma punhalada? Uma mulher seria capaz? Mas quem tinha certeza de que o velho teria morrido mesmo da punhalada? Porque, mesmo sem saber do truque, estranhei que alguém com uma faca nas costas resolvesse fazer um tour pela lavanderia. E a baba? Ninguém mencionava a baba do velho, mas ele havia sido visto claramente babando!

Foi só a leitura do diário, porém, que ao mesmo tempo jogou de volta às trevas e trouxe a luz para a resolução do caso. Porque Austregésilo revelou que sabia que todos queriam matá-lo. Mais do que isso, estava preparado e desejoso de uma tentativa de assassinato. Então por que todos os dispositivos de segurança falharam? Se o velho estava prevenido de seu algoz, como ainda assim ele conseguiu driblar sua vigilância? Foi então que eliminei todas as impossibilidades e o que restou foi a vida. A vida, com suas incongruências e incertezas; o imponderável e o destino.

- Er... dá licença? Posso per-gun-tar uma coi-si-nha?

- Pois não, Danton.

- Dá para ser mais cla-ro?

- Dá, sim. Eu queria mostrar para vocês uma travessa que encontrei na copa da mansão. Reparem que é um arranjo de frutas de cera. Mas as frutas são esculpidas à perfeição. Grande fanfarrão que era, Austregésilo provavelmente se deleitava com as confusões dos recém-contratados empregados, que comiam secretamente suas frutas por engano, só para perceberem que eram de mentira.

- Como você reparou nisso, grande?

- Quando cheguei, tive a maior vontade de pegar uma dessas uvas. Estavam mesmo muito vistosas. E o que me intrigou desde que vi o cacho foi a falta de uma uva no arranjo. Sem que ninguém notasse, procurei, ao longo da noite, a uva perdida...

- E o que um cacho de uvas de cera faltando uma teria a ver com a morte do velho mesmo?...

- Cale-se, cretino. Você está estragando meu mise-en-scene.

- Se ao menos eu soubesse o que é misancêne...

- O fato é que encontrei a uva quando terminei a leitura do diário.

- Ugh, você está enfiando a mão na garg...

- Ela está aqui! Austregésilo morreu engasgado com uma uva de cera.

- Ooooooooooooooooooooooohhhhhhhhh!

- Vitimado por sua própria fanfarronice combinada a uma larica mal-sucedida, provavelmente causada pela sessão de fumaça que partilhou com Ronald. Engasgado, ainda tentou buscar ajuda de alguém. Foi quando topou com Gabriel na lavanderia, a quem Austregésilo, morrendo engasgado, pareceu apenas um “velho arrogante com uma faca enfiada nas costas” – faca essa que já havia sido enfiada pelos ingênuos irmãos Grosso, numa trama do velho. Ele sabia que era mal-quisto e, dando as condições adequadas, era impossível que, de todos os convidados, escolhidos a dedo entre antigos desafetos ou gente que tinha contas a acertar com ele, nenhum tentasse matá-lo.

- Bem que a gente estranhou aquela mira nas costas dele, dizendo “enfie a faca aqui”.

* * * * * *


“Aqui jaz Austregésilo Castello-Branco, que morreu engasgado com uma uva de cera”.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Interlúdio 17

- Cabelo! Você checou se o velho estava morto mesmo?
- Porra, Neneco, o detetive é você! Eu sou o mordomo!
- Pensei que verificar o pulso dos cadáveres estava nas suas funções. Junto a servir chá, apanhar o casaco dos convidados e ser culpado de tudo.
- Que tal pararmos de gracinha e irmos lá checar o corpo?
- Vai na frente que eu já tô indo atrás.

(...)

- E aí?
- Tá morto mesmo. Mas a faca, veja só, estava acoplada nessa geringonça de dublê amarrada aqui nas costas. Não tem sangue nem nada da facada.
- E como você tem certeza de que ele está morto?
- Bom, não consigo achar o pulso.
- Bota um espelhinho na frente da boca dele. Sempre vejo isso nos filmes.
- Ok.
- Cabelo, porque você tem um estojinho de pó compacto no bolso?!
- Eu... er... Ah, é o único espelhinho que eu tenho aqui, não reclama. E não faz perguntas.
- E aí, embaçou?
- Nada.
- Ouve o coração.
- Bom, isso era capaz do velho não ter nem em vida...
- Tentou fazer cosquinha na barriga?
- Que tipo de procedimento é esse, Neneco?
- Pô, ninguém resiste a cosquinha na barriga!
- Eu não vou fazer cosquinha na barriga de um cadáver.
- Tá bem, eu me encarrego dessa... A-cuti-cuti-cuti! A-cuti-cuti-cuti!
- Nem se mexeu.
- Então tá morto mesmo. Mas eu acho que já sei o que aconteceu. Reúna os convidados na sala, Cabelo. E me ajuda a levar o corpo para lá.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O Final Acachapante - parte I

Ou O Diário do Velho, Só o Último Mês

25/05
Hoje colhi uma bela flor no jardim.
Fui de novo visitar o que, no futuro, pretendo transformar na Igreja de Jesus Cristo dos Frotas dos Últimos Dias. O problema é que eu acho que eu vi a Margarida rondando por lá. Não sei se ela me viu. Ela achava que eu não sabia que ela não podia ter filhos quando mandei ela sair com o Igor, mas eu sabia. Eu sempre sei de tudo, eu sou sabão (hihihi).
Ela não perde por esperar. Atriz e modelo, sei...

03/06
Hoje bati com o dedinho no pé da poltrona e falei um monte de palavrão.
Já contei que chamei um biografo para escrever um livro sobre a minha vida. Era pra ser um livro tipo o daquele cara da GM, contando minha trajetória de sucesso no mundo empresarial, mas o idiota descobriu meu lance com o Roberto e quer colocar no livro. Tentei argumentar calmamente com ele que eu estava pagando, então eu dizia o que podia ou não escrever, mas ele continuou teimando, mesmo o Cabelo enfiando a cabeça dele repetidas vezes na banheira cheia de água. Depois vou ter que dar um jeito nele.

07/06
Hoje o cheiro do café espalhado na cozinha me trouxe uma série de lembranças.
Lembrar de pagar o carnê do bagulho.
Lembrar de dar um jeito de tirar o manqueta do meu testamento.

12/06
Hoje comi a Carminha a noite inteira.
De manhã veio aqui aquele meu sobrinho doido. Agora ele veio com um papo de arrastar móveis de um lado para o outro pra mudar as “energias”. Ele acha que vai ficar com toda minha grana... Vai pensando. De qualquer jeito acho que ele está de namorico com o Cabelo. Esse mundo tá mesmo perdido.

14/06
Hoje vi uma nuvem no céu que parecia um coelho.
Cara, se tem uma coisa que me tira do sério são derivados de polipropileno. Ainda se fosse funcionalizado com anidrido maléico, vá lá. Mas não vejo razão para a existência do polipropileno puro e simples, assim. Afinal, quem precisa de plástico? Eu sou do tempo em que tudo era embalado com folha de bananeira, e vivíamos bem assim.

20/06
Hoje comecei a planejar meu assassinato.
Já faz tempo ando meio entediado com essa vidinha. Nos bons tempos a gente aprontava bastante, agora é só esse arroz feijão de chantagem, agiotagem e jogatina; tudo muito boring. Claro que eu não vou morrer de verdade. É só pra causar mesmo.
Vou fazer uma festa e chamar um monte de gente que tem motivos pra me matar. Aí eu supostamente apareço morto no meio da festa, depois dou um jeito de sumir e vai ser o maior fuzuê, com neguinho se acusando e o escambau. Os jornais vão fazer a festa, muito da hora. Aí, sei lá, um mês depois eu apareço vivinho, tipo último capítulo de novela. Acho que vou chamar o Rino na festa, ele é o único que vai entender o que tá rolando e vai se divertir. Só tenho que lembrar de não convidar aquele cara da piada do pavê, não quero concorrência, alguém pode acabar se empolgando e matando ele de verdade.
Andei conversando com uns dublês e especulando uns esquemas. Tem a famosa facada nas costas; parece que eles têm um dispositivo para isso. Aí dou um jeito de algum dos idiotas ter a faca ao alcance das mãos e ofereço minhas costas já usando o aparato hollywoodiano.
Mandei também fazerem meu caixão. Acho clássica essa, de encomendar o caixão. Vai chegar na hora da festa, pra dar um clima.
Enfim, cuidados todos os detalhes, vou me divertir à pampa. (Eu me lembro de quando usar gírias de velhinho levantava meu astral; agora, nem isso, bro). Preciso urgente de alguma adrenalina. E a única cena que me resta é a morte.

O Diário do Velho

"Querido diário,
Hoje eu briguei com o Rino na hora do lanche. Eu peguei o último biscoito recheado do pacote e ele arrancou da minha mão, aí eu dei um tapa na cara dele e ele chutou minha canela. Aí o biscoito caiu no chão e o gordo do Zeca pisou e esmigalhou tudo. Aí eu e o Rino começamos a cantar: Timtumtum elefante, Timtumtum elefante! A gente chama o Zeca gordo de timtumtum porque quando ele anda a terra treme: Tim-tum-tum, tum-tum-tum. Hahahahahaha, que engraçado!
Mas o chato mesmo é que aí veio a tia Lúcia e deu bronca na gente e perguntou se a gente tava feliz agora que ninguém ia comer o biscoito porque ele tava todo esmigalhado. Claro que a gente não estava feliz, a gente queria mesmo que tivesse mais um pacote de biscoito.
O resto do dia foi chato. A gente ia jogar bola e escolhemos os times e tudo, mas aí vieram os grandes da quarta e expulsaram a gente da quadra. Depois teve duas aulas seguidas de português e a gente teve que copiar um texto enorme. Depois eu fui pra casa e depois fui brincar na rua e depois voltei pra casa e depois tomei banho e depois jantei e agora estou escrevendo aqui.
Boa noite."



- Neneco, de que data é isso?
- 17 de março de 1936.
- Neneco!
- Que foi, Cabelo? A gente tem que começar a ler um livro pelo começo!
- Não me irrita, Neneco. Vai logo pro final. Começa aí pelo último mês de vida do velho. Se não tiver nada a gente vai mais pra trás.
- Tá bom, mas eu fiquei com pena do Zeca Gordo.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Interlúdio 16

- Então foi você que apunhalou o velho pelas costas! Ou foi você? Ou foram vocês? Agora fiquei meio confuso. Cabelo, algema eles!
- Eles já tão grudados um no outro, Neneco. Não acho que algemar eles vá fazer muita diferença.
- Hum, tem razão. Então vamos chamar logo a polícia. Mais um caso resolvido com sucesso.
- Eu não chamaria o fato do assassino aparecer de livre e espontânea vontade confessando o crime de “mais um caso resolvido com sucesso”. Mas pelo menos livraram minha cara. Deixa eu apanhar o telefone...


- Um momento, detetives!
- Desculpe, os depoimentos acabaram e nós já temos um culpado. Aliás, um não. Dois. Estamos bem satisfeitos.
- Mas eu encontrei um negócio que pode interessar. É um livro grosso, de capa dura, com colagens na capa e anotações diárias de seu proprietário, sob um ponto de vista subjetivo.
- Você quer dizer... um diário?
- Isso mesmo.
- Onde você achou isso, rapaz?
- Naquele cômodo da casa destinado ao processo de limpeza das roupas domésticas.
- Na lavanderia?
- Isso aí. Vocês me botaram lá para autografar meu livro, lembra?
- Ah, é. E aí, Cabelo, vamos dar uma olhada nessa bagaça?
- Claro que vamos, Neneco! Que tipo de detetive é você, que despreza uma evidência importante dessas, o diário da vítima?
- É que está quase amanhecendo, estou com fome e isto está me cheirando a reviravolta...

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Irmãos Grosso

Lacerad: Boa noite. Nós somos os irmãos Grosso. Eu sou Lacerad Grosso.

Dan: E eu sou Dan Grosso. Sim, é um nome patético, eu sei. Mas acredite, nunca fizeram piada com esse nome na escola. Acho que o fato de ter um irmão gêmeo grudado em mim pela nádega esquerda sempre foi uma fonte mais interessante de piadas.

Lacerad: Nossa condição biológica é delicada.

Dan: Na verdade ela é delicada somente no sentido figurado. Fisicamente, nós estamos bem presos.

Lacerad: Pessoas siamesas, pra quem não sabe, não são como gatos de corpo branco e cabeça preta. Pessoas siamesas são grudadas. Todo dia. Até que a sorte os separe.

Dan: Sorte que nunca veio.

Lacerad: Da defecação até a procrastinação. Da urinagem até a modelagem. Na infância é péssimo, não dá pra brincar de pega-pega. Mas depois piora...

Dan: Eu nunca gostei de brincar de esconde-esconde. Todo mundo encontrava a gente. Eu até conseguia me esconder no armário, mas o Lacerad sempre ficava de fora. Aliás, falando em armário...

Lacerad: ...piora quando você descobre suas preferências sexuais alternativas. Ok, isso não cabe na discussão de hoje.

Dan: Afinal, vocês não estão aqui para saber sobre a nossa triste infância. Você querem saber quem usou aquele velho filha da puta como porta facas, não é mesmo? Espero que na autópsia descubram que a meia vivarina que ele usava não foi capaz de protegê-lo da faca Ginsu. Mas para isso, precisamos falar mais um pouco da nossa condição física.

Lacerad: Na verdade, gostaríamos de reclamar daquele filme naipe sessão da tarde, dos gêmeos siameses. Aquilo é uma banalização piro-sincrética dos valores folclóricos indígenas. Ou como dizia Kincaid Spencer, uma puta falta de respeito. Aliás, nem assistimos essa merda. Aliás nem vamos ao cinema porque sempre rola a piada da meia-entrada com a gente. Como dizia Kincaid Spencer, uma puta falta de respeito.

Dan: Apesar das diferentes preferências sexuais, que meu irmão prefere chamar de "preferências orificiais", nós sempre trabalhamos bem em equipe. Primeiro tentamos fazer dupla de badminton, depois de tênis de mesa (a gente não chama de ping pong pois achamos um nome, digamos, pouco olímpico). As duas tentativas fracassaram. Especialmente a do tênis de mesa. Disputamos um campeonato com dois chineses siameses com polidactilia. Eles jogavam mais rápido do que o Forrest Gump depois de usar crack.

Lacerad: Também jogamos pebolim humano (sim, isso existe) e não nos saímos mal (atuávamos na zaga, desempenho até melhor do que a saudosa dupla Gralak & Elias). Até que um dia realizamos (realizamos não, percebemos. Realizar é verbo de candidata à miss) que a nossa verdadeira vocação estava na mordomia. Não aquela banda de bichonas espanholas de cabelos esvoaçados por leques de purpurina. Falo da profissão mais inglesa do Peloponeso Setentrional: a arte de ser mordomo. Mas não a de mordomos solitários como Sérgio Mamberti, o eterno criado da Odette Roitmann, ou Alfred, o solicitíssimo puxa-saco de Bruce Wayne. Apostamos num novo conceito, do mordomo de quatro braços. O conceito do um lava e o outro enxuga. Um abre a porta e o outro pega o casaco. Um faz apologia e o outro dichava. E nos matriculamos no curso de mordomos do Sesc.

Dan: Nós tínhamos essa idéia de sermos um novo conceito em mordomos e a abraçamos com os quatro braços. Estávamos realmente muito empolgados. Mas o que o meu irmão Lacerad não esperava era que, mais uma vez, nós iríamos nos tornar motivo de piada. E não eram piadas sobre o sobre o fato de nós termos a mesma maldição dos irmão Corso (tente imaginar como é desagradável sentir tudo o que o seu irmão sente, especialmente quando ele é um gay extremamente ativo e você é um heterossexual convicto). O problema era que, apesar de nós sermos os primeiros da turma, nós nunca havíamos sido culpados de nada. Dan e Lacerad, os mordomos inocentes, eram como eles nos chamavam.

Lacerad: Muita humilhação, cara, sem idéia....

Dan: Não foi fácil. Desistimos do curso, deixamos nosso sonho para depois. Tentamos comprar uma carteira falsa da Ordem dos Mordomos do Brasil, mas só conseguimos uma carteirinha da OAB. Foi quando o meu irmão teve uma idéia genial: E se nós matássemos alguém? Alguém rico e que more em uma mansão? Isso nos daria o respeito que tanto precisávamos. Só assim poderíamos voltar de cabeça erguida para o nosso curso de mordomos no Sesc Itaquera.

Lacerad: Foi aí que começamos a prospectar potenciais alvos. E foi nessa que abriu uma vaga para mordomos estagiários na casa do ilustríssimo Sr. Austregésilo Castello Branco. Tínhamos certeza que as tendências bizarras do ancião não resistiriam ao nosso freak show gratuito e cotidiano. Dito e feito, fomos contratados. E então se seguiram dois felizes anos nos quais tentávamos diária e sistematicamente matar o maguína (sic), sem resultados convincentes. Cianureto no café, alçapões artesanais embaixo de tapetes, superaquecimento da sauna, freio do carro sabotado. Nada funcionava.

Dan: Até que o velho se encheu e mandou a gente embora.

Lacerad: Mas o tempo passou e o bom Austré mostrou que não guarda rancor. Ficamos muito honrados de termos recebido o convite para esta festa e com isto a última e imperdível oportunidade de matá-lo.

Dan: E foi exatamente isso que a gente fez.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Interlúdio 15

- Neneco, cê ta de sacanagem comigo. Fala a verdade, você contratou esse cara para falar que é o tal do tio Vladimilson.
- Deixa de ser paranóico, Cabelo. Eu estou aqui a noite inteira com você. Como ia contratar alguém para alguma coisa?
- Sei.
- Mas você tem razão. Esse cara não parece muito o tio Vladimilson não. Isso deve ser coisa do Adamastor. Esse sim é um piadista incurável.
- Que Adamastor?
- Como que Adamastor, Cabelo. Como você é esquecido! O primo Adamastor, filho do tio Vladimilson!
- Desisto! Você pega esse bando de parentes imaginários e enfia...
- Calma, Cabelo, não precisa ficar nervoso. E aí? Acabou a parte dos interrogatórios? Já podemos ir pra casa?
- Que casa, Neneco? A gente ainda precisa descobrir quem matou o velho. Se não eu que vou acabar me ferrando. Vou lá fora ver se a gente já entrevistou todo mundo.
- Tá.
(...)
- Er... Neneco, tem uns caras aí fora dizendo que querem falar com a gente.
- Uns caras?
- É, hum, parece que são dois irmãos, mas depende um pouco do ponto de vista. Eles estavam até agora escondidos na despensa, por isso ninguém notou.
- Cabelo, não estou entendendo nada, manda logo um dos caras entrar.
- Hum, acho melhor falar com os dois ao mesmo tempo.
- Tá bom, entra os dois logo então!

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Mano Vlad

Fala aí, Cabelo! E aí, Neneco, tudo certo, camarada? Tudo beleza? Joinha, joinha? Que é que foi, rapa? Tão me reconhecendo não? Faz tempo, né?

Peraí, num tão lembrados mesmo? Tem caô não! Ceis vão se lembrar, deixe estar.

Se eu conhecia o velho Astor? Austregésilo, grande companheiro de batucada! Mais conhecido na Vila Nhocunhé como Gegé da Cuíca, rapaz! Ééé... o tiozinho mandava na cuíca como poucos lá no Sambão do Orozimbo!

Pô Neneco! Como assim, “onde fica a Vila Nhocunhé”? Ta precisando levar uns cascudos no escutador pra ver se dá linha? A Vila Nhocunhé, cumpadi, lá onde a Delzidete mora, pô! Que Delzidete? Ai, carai... ceis vão lembrar.

Mas então, como eu tava dizendo, o Astorzinho era camarada da molecada do Bar do Orozimbo. Nunca vi um tiozinho mandar tão bem num ovo cor de rosa que nem ele! O Zimbo tinha um pote com o nome do Gezinho no balcão! Tudo bem que na hora da cuíca cantar o Gegé parecia um canhão em desfile de 7 de Setembro, soltando tanta bufa na rodinha... Cada gorfada de ar que era quase uma guerra química!

Hein? Se eu tava na festa? Ceis dois fazem cada pergunta... claro que eu tava na festa. Se eu não tivesse lá, o que que eu ia tar fazendo aqui? Matando saudades? Eu vim. Ah, eu vim... eu vim de lá pequenininho... mas eu vim de lá pequenininho... tá, eu paro de batucar. Eu fui na festa. O Gegé me convidou, queria que eu fosse lá ver a Carminha ao vivo, vestida de copeira. Ele tinha que esfregar na minha cara que a Carminha era dele agora.

Velho gagá, brocha de uma figa! Achava que podia ficar circulando pela Vila Nhocunhé, tocar nossa cuíca, comer nosso ovo cor de rosa e ainda por cima roubar a Carminha? Podia não! A gente é pobre, mas tem orgulho, cara! Neguinho num chega assim chegando nas nossas paradas não! Só porque ele tinha dinheiro, morava numa mansão e tinha um cofre cheio de jóias achava que podia roubar nosso maior tesouro? Justo a Carminha? Tinha nego que cortava até mindinho pra conquistar a Carminha e o velho leva ela embora? Sacanagem, sacanagem...

Como é que eu sei do cofre? A Carminha me contou. Aquela vadia não vale nada... tava lá, desarrumando a cama do veio mas tava passando a fita da casa pra vila inteira. Quando ele me convidou pra festa eu tive certeza que minha hora tinha chegado. Era a hora perfeita: eu fingia que vinha só pra ver a Carminha vestida de arrumadeira – como se eu precisasse! Aquela vadia já desfilou fantasia bem melhor pelo meu pagode, se é que vocês me entendem... – dava uns supapos na careca do velho pra ele entender quem é que mandava, e ainda afanava as jóias, pra garantir a aposentadoria.

Se eu matei o veio? Pô rapaz! Sou da Vila Nhocunhé mas num sô bandido não! Só porque a gente é pobre é suspeito? E justo vocês dois me acusarem? Eu só queria dar um susto nele... mostrar que com a Vila Nhocunhé não se brinca.

Ó! Foi assim: eu cheguei na festa, tava lá, circulando, assuntando pra ver quem era bacana de verdade, pra tentar descolar mais informações sobre o velho. Só consegui descobrir que o Gegé da Cuíca não estava com essa moral toda ali não. Neguinho tava com sangue nos olhos, véio! Queriam acabar com a raça do Gegé! Coisa de louco mesmo. Eu fiquei até com pena de ver tanta gente detestando o velhinho.

Eu não tinha motivos pra não gostar dele. Quer dizer, ele era gente fina, até se meter com a Carminha... ah, a Carminha!

Ah é. Aí eu tava lá, comendo e bebendo do bom e do melhor, pensando o que é que o véio tinha visto no ovo cor-de-rosa do Orozimbo se ele tinha tanta comida boa ali com ele! Aí eu fui atrás da Carminha, entrei num quarto e nada, entrei no outro, nada...

Foi então que eu vi o velho se arrastando pelo corredor, com a boca espumando igual um cachorro com raiva. Tentei falar com ele, ver se dava pra ajudar, mas ele só apontava pra um quadro, eu não entendi muito bem. Ele falava jóia! Jóia! E eu respondia: tá tudo jóia, Gegé. Se preocupa não, não estou com raiva por causa da Carminha!

Mas ele caiu duro! Aí eu desci correndo pra procurar a Carminha e fiquei bem quieto no meu canto, porque neguinho era capaz de achar que só porque eu sou da Vila Nhocunhé eu sou suspeito, né?

Agora eu vou confessar uma coisa pra vocês: tô magoado, cara! Tô magoado mesmo... a gente já passou por tanta coisa juntos e vocês não se lembram de mim? Sou eu, pô, o Tio Vladimilson!

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Interlúdio 14

- Unha encravada, Neneco? Limpa essa baba que já está escorrendo pelo queixo.
- A garota tava pelada, Cabelo! Você é feito de gelo?
- Deixa disso, Nen, menininha assim é chave de cadeia. E essa Carminha é sonsa. Os móveis da casa vivem empoeirados.
- Êeee, lá em casa... Eu acho isso peremptório, esse Austregésilo ter tudo, essa mansão, dinheiro, iates, mulheres... E outros com tão pouco!
- Peremptório, Neneco?
- É, peremptório, o mesmo que injusto.
- Calaboca! Peremptório é quando a gente troca uma coisa pela outra. Sinopse de injusto é prolixo.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Carminha

Olá, senhor detetive. Olha, sinceramente eu não sei por que eu tenho que dar meu depoimento nessa história toda, mas vou colaborar viu. Como? Me vestir? Ué, eu realmente não entendo vocês investigadores. Em todos aqueles seriados vocês exaltam a importância de preservar as tais das evidências e tudo mais. Então se estou envolvida em algo, eu achei melhor ficar exatamente como estava e...

Ah, eu tenho evidências demais para a sua lupazinha e toda atenção é necessária nesse momento? Certo, certo, deixa eu ver se não tem algo para eu vestir aqui embaixo dessa cama confortável e redonda, hum, cadê... Ah, achei! Nossa, calma detetive, respira, respira, o senhor não precisa se preocupar, já achei o meu aventalzinho.

Detetive, agora que o senhor se acalmou, posso perguntar uma coisa? Esse seu sobretudo é para esconder alguma coisa diferente que o senhor tenha no corpo? Algo tipo um apêndice externo, um terceiro braço, uma perna torta, uma orelha nas costas, dedos extras, um desvio de... Não? Nadinha? O senhor é perfeitamente normal? Ah, uma pena, uma pena.

Pois bem detetive, eu não sei se posso ajudar muito, pois trabalho para o Austregésilo há bem pouco tempo. E vou ser sincera com o senhor, a minha função aqui é mais relacionada a desarrumar as camas do que arrumá-las. Acontece que esse velho é um sem vergonha de primeira, e adora uma menina novinha. É, eu sabia disso sim, mas não pude resistir, pois ele acabou descobrindo que me excito de forma quase que incontrolável com coisas anormais nas pessoas e, bem, aquele terceiro mamilo dele era algo simplesmente irresistível...

Daí o senhor começa a entender o que eu estava fazendo na cama com aquele tal filho bastardo dele, não é mesmo? Não sei se o senhor viu que coisa mais linda eram aqueles dois pés esquerdos dele detetive! Pergunta pro mordomo, o tal do Peruca, digo, Cabelo. Ele não tirava os olhos do rapaz... E eu reparei bem nisso, pois eu estava ali, nuazinha e ele simplesmente me ignorava, sabia? Estranho né? Parecia que ele estava em transe e ficava balbuciando um nome esquisito, algo como Vladvostok, Vladistone, Vladgladson, sei lá.

Mas bem, acho que isso não é importante de qualquer maneira. Na verdade o rapaz dos pés esquerdos me pegou num momento carente, pois estava triste com o Three-nipples-gésilo.

Ele me pedia para chamá-lo assim quando desarrumávamos camas juntos e eu estava realmente com saudades dele. Há alguns dias já que eu não acariciava aquelas três belezinhas em seu peito e resolvi que ia tirar essa história a limpo. Afinal, ele não podia me seduzir e depois me ignorar! Confesso que resolvi pregar uma peça nele e troquei a bala de catuaba que ele costuma tomar de hora em hora por um tablete de Sonrisal. Seria engraçado ver o velho espumando como um cachorro louco e... Mas é claro que era só Sonrisal detetive! Eu não seria capaz de acabar com ele. Eu amava aquele terceiro mamilo!

Só que não consegui falar com ele, nem ver o tadinho espumando, pois acabei trombando com o Pézinho... Já falei que aquele segundo pé esquerdo dele era lindo? Já, ah, é verdade, é verdade. Mas foi isso, eu só fiquei sabendo mesmo do que aconteceu quando o Peruca apareceu por lá atrapalhando a nossa brincadeira. E a partir daí só fiz esperar até chegar a minha vez de falar com o senhor.

Aliás, será que eu não podia dar uma olhada nele, sem camisa, para ver se não identifico algo de anormal? Não? E uma foto Também não? Ah, que coisa... Mas tudo bem, eu não tenho mais nada para dizer mesmo e queria continuar desarrumando aquela cama com o Pézinho.

Se bem que parece que ele havia chamado a atenção do podólatra, digo, podólogo que esta na festa também. Não sei se terei alguma chance com ele ainda hoje e isso está me deixando preocupada... Não gosto quando não consigo terminar o que começo detetive, não gosto! Uma cama tem que ser desarrumada direito e estou preocupada com isso.

Deve ser algum traço obsessivo compulsivo que tenho sabe, não posso... O que? Mais uma pergunta? Tudo bem, eu respondo e... Como é que é? Eu o que? Quer saber se você onde?

Isso é ultrajante Detetive Mesquita. E não, uma unha encravada não me excita!

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Interlúdio 13

- Deixa ver se eu entendi, Cabelo... O Austregésilo matou aquela dupla de compositores baianos e botou outros no lugar? E ninguém percebeu até agora?
- É, foi isso que o cara disse.
- Meu Deus, tô passado! Esse tempo todo eu ouvi Asa de Águia e Chiclete com Banana, mas não eram o Durval e o Bell? Quero a grana da entrada das micaretas de volta! E pode arrancar aquele adesivo do Camaleão do meu carro.
- Neneco, você não tem carro.
- Isso torna tudo mais fácil.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Severino H. P.


Atenção: Esse depoimento contém expressões e cenas fortes. Se você tem coração fraco, mente fraca ou órgãos sexuais fracos é melhor não ler. Pessoas que tenham restrições morais a suecas peladas e anões besuntados em óleo também estão desaconselhadas a continuar essa leitura.



Antes de tudo, são todos idiotas. Vocês, a humanidade, a fimose do Fidel Castro e quem mais acreditar em Natal, supositórios e que mulheres com muito buço vão arrumar maridos.
O óbvio é o que sobra quando a gordura do esmegma das superstições que cobre a glande da certeza iluminada é retirada pela vulva da perspicácia. Simples assim, tão claro como o fato de que, se o Cebolinha falasse o nome do ator Paulo César Grande, alguém muito pervertido ficaria excitado.

Tenho um certo transtorno obsessivo compulsivo, desde que mudei de vida, com glandes, prepúcios e pelinhas que cobrem tudo isso. Para que a pelinha? Isso eu nunca entendi. E ela tem um freiozinho feito de mais pelinha. E a boquinha do pênis? E se pintarmos com nanquim preto e colocar uma rodinha aqui e outra ali, ao mexer a boquinha do pênis, tudo vai parecer um Mickey Mouse. Principalmente se a glande tiver algumas roséolas sifilíticas. Mas isso é tergisversação para chegar ao principal, e eu me perco um pouco, principalmente quando estamos perto das Festas Sagradas do Povo Nazca. Tempo bom de moral pujante que nunca mais voltará, graças a liberais efeminados e emaconhados.

Dito isto, vou falar algo que definitivamente mudará o rumo de tudo.
Chamo-me Severino Hewlett Packard.
Como cavaleiro que sou, da Quarta Ordem Sagrada de Cascorão, Senhor do Embutido Merovingeo, Prelado do Sétimo filho de Anauê-uê-aê, e detentor da presidencia da T.T. F.F.P.P. (Tradição das Taras Familiares Feudais in Proprietas Penisticus) eu conheci o senhor Austregésilo Castello-Branco. Altivo, Moralista, bastião da verdade, religião e segurança, e principalmente, dono de um membro viril de quase 23 centímetros e que conseguia ficar duro por quase 5 horas seguidas nas orgias, ele morreu como viveu: Fodido.
Morrer não é o principal. As cagadas que se fazem entre sair do útero da sua mãe, coberto de placenta e morrer sem nunca ter chupado uma tetinha de japonesa gueixa com leite materno é o que importa. Seja como for, o jovem (não era o velho, velho; não o chamarei assim) que eu conheci em 1969 em Bethel, Nova York, era alguém a se admirar.
Era em Woodstock, e estávamos fazendo a diferença.
Já na época, ele fazia coisas de sarapantar. Tinha convencido Joe Cocker, um idiota metido a músico, mas na real um maconheiro iletrado, de que se ele pregasse o Bhagavad Gita durante nove semanas para quatro tijolos de barro, duas latas de Cherry Coke e um peixe semidigerido, folhas de maconha iam nascer do ânus de Nixon.
Então Joe Cocker acreditou e foi-se, e o jovem Austregésilo tomou o lugar dele e, numa tarde particularmente estúpida, cantou três músicas e depois desmaiou, chapado de tantas coisas que se você cheirasse o sovaco dele nesse momento, ia ter uma revelação divina, provavelmente orar em línguas e ser eleito papa.
Eu era um dos roadies do Sha-na-na, e naquele momento estava sendo felado por um hippiezinho chamado Gerald Thomas. Enquanto Thomas engasgava com meus líquidos espermais do amor, eu vi aquele Joe Cocker que não era Joe Cocker no palco, e tive um momento epifânico. Soltei gases intestinais na cara do Thomas, que reclamava de ainda não ter gozado.
Suavemente, soquei a orelha do hippiezinho idiota e chorão (que no futuro iria ser nosso nêmesis, mas isso é outra história) e resolvi abandonar aquela Sodoma com cara de pastelaria budista.

Não vou me perder em contar comos, porquês e ondes, porque no momento isto não interessa e estou com uma vontade filho da meretriz barata da beira do cais de urinar, mas ao final de um tempo, estávamos em Londres.
É ai que tem o ponto focal. Aí vocês vão perceber o turning point.
Tínhamos nos estabelecidos como bruxos do amor, e naquela época, se acreditava em qualquer porra que se dissesse, desde que tivesse maconha, LSD ou magia no meio.
Como bons brasileiros que não éramos, adorávamos pegar brasileirinhas hiponguinhas. E, devo dizer, brasileirinhos também. Austregésilo era um sodomita contumaz. Não sou eu que irei julgá-lo. Eu sempre fui mais tradicionalista, sempre preferi que mulheres com muitos pêlos pubianos e clitóris gigantes defecassem em mim após duas semanas de regime forçado de abacate e carne crua. Isso sim é um sexo tradicional, mas como disse, não sou juiz. Executor talvez, mas isso não interessa.
Seja como for,duas semanas após o Natal de 70, veio nos procurar um jovem brasileiro baiano exilado. Austregésilo caiu de amores por ele, e o chamava de “leãozinho”.
Embora eu o achasse parecido com cárie mal tratada de Lindsay, a caminhoneira que nos fornecia ayuasca, e não gostasse das músicas horríveis que ele fazia (em particular uma que ficou famosa, que envolvia o tal do apelido carinhoso do Austregésilo) até admitia essa sem vergonhice, porque Austregésilo, envolvido do jeito que estava, deixava meus peixes em paz. Era horrível você fazer um belo salmão no domingo de Páscoa apenas pra descobrir que o molho branco do peixe era outra coisa. Enfim, um belo dia deu merda.
Austregésilo tentava uma nova posição sexual conhecida como “Anaconda subindo no galinheiro”. Foi então, enquanto fazia afazeres nada domésticos que fui interrompido.
Austregésilo chorava de modo muito efeminado, e isto me irritou, como irritava um outro brasileirinho chato que se dizia bruxo, era amigo de Raul Seixas e também chorava como menininha.
Austregésilo tinha matado o jovem promissor cantor brasileiro baiano exilado com caracois nos cabelos.
Ele tinha sido empalado por um violão Vecchio, muito bonito, de jacarandá paquistanês falso. Estava morto. Ao seu lado, um outro jovem exilado cantor baiano afro-descendente jurava vingança. E fazia uma zona enorme, gritando, histérico feitoviúva italiana dançando tarantela.
Tive que dar um tiro nos cornos dele, enquanto soluçava antevendo o desastre que viria.
A morte chegava ao sonho de paz, amor e goldenshower.
Era o fim de nossa vida de reis-misticos-falsos-hippies em Londres.
Só havia uma solução prática, rápida e lógica para nosso dilema: Fizemos um pacto com Satã, que clonou Paul McCartney (após matá-lo em um bizarro acidente com máquinas fotográficas) e o substituiu nos Beatles por Asmodeu, senhor do sétimo circulo e autor de Yesterday.
Assim, viajamos a Transilvânia, e com a ajuda do Doutor Frankenstein Junior, usamos o corpo morto de Paul para substituir os corpos dos brasileirinhos baianos exilados e mortos.
Ninguém nunca notou a diferença.
Austregésilo e eu fugimos para o Brasil, passamos os anos 70 desvendando mistérios pelo país, viajando num furgão com um cachorro falante e mais duas prostitutas suecas, viajamos no tempo, detivemos Chtllu no Armagedon e nos separamos quando eu comecei a namorar Edir Macedo e finalmente conheci o Pai das Luzes. Óbvio, isso é outra história e depende de cachê e direitos autorais pra ser conhecida.
Hoje, como ex-mãe, pai, sogro e concunhado de encostos, eu tenho minha alma salva. Aleluia.
Austregésilo, por outro lado, morreu sem conhecer o vale do sal e a salvação.
O que eu sei é que alguém me mandou um bilhete, em 1989, que dizia claramente:
“Eu sei o que vocês fizeram em Londres, mainha, pega em cima pega em baixo
Depois de nove meses você vê o resultado”
Isso resume claramente o que vocês devem fazer. Ajam rápido em nome de Deus. Pelas crianças. Pela pátria, senão por outra coisa.
Ah, Não? Fodam-se então.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Interlúdio 12

- Popular, o Austregésilo, não, Neneco?
- Como assim?
- Cada filhodaputa presente nessa festa queria matar o Velho.
- Então por que você está falando que ele era popular, Cabelo?
- Eu estou sendo irônico, Neneco.
(...)
- Sabe que, uma vez, resolvi um caso assim... há muito tempo, em um trem. Foi uma longa viagem, da Europa ao Oriente, e quando um dos passageiros foi assassinado, me escalaram para resolver o caso, um gorducho baixinho de bigode me ajudou e no fim eu descobri...
- Neneco, isso é Agatha Christie!
- Você está sendo irônico de novo?

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Parquestilomeno Mano

Meu nome é Parquestilomeno de Souza Andrade Costa da Silva Aguiar, mas os meus amigo me chamam de Mano. Não, não, não sou um adorador de rap ou algo que o valha, mas esse apelido veio graças a uma homenagem ao grande Wilson Mano, Deus da raça.
Mas isso pouco importa, tendo como base a enrascada que eu fui me meter. Veja bem, eu nunca gostei muito desse velho e isso vem de longa data. Você quer saber por que? Tá, te conto.
Eu sempre fui um perdedor na vida. Perdia em todos os jogos que disputava. Pôquer, fubeca, sinuca, pião, carambola, qualquer coisa eu perdia. Uma vez joguei par ou ímpar com o espelho e perdi de 4 a 0.
Nas apostas então, eu era um desastre, nunca ganhei uma. Uma vez uns amigos arrumaram uma rifa para eu comprar e eu escolhi o número 33. Para o sorteio, eles encheram um chapéu de palha com o número 33 e pediram para eu retirar o número.
“Deu 55”, falei após puxar o selo que marca o número do chapéu.
E minha vida foi seguindo assim por muito tempo até que, para comemorar a “Festa do Maçarico de 82”, o prefeito da cidade resolveu instituir uma nova competição que me animou.
“Cinco mil cruzeiros para o nome mais feio da festa”. Tava ganho. Como alguém poderia ter um nome pior que o meu? Pior que o meu não seria nem nome, mas uma ofensa imperdoável.
Pois é... Eu estava confiante e liquidava cada adversário que surgia até aparecer o Austregésilo. Veja bem... Austregésilo não dá. Por menos que isso eu já vi morte.
Pois é, perdi a aposta e vivi perambulando até semana passada quando, pedindo minha esmolinha, uma pessoa me disse:
“Você não é o Parquestilomeno?”
Reconheci na hora a voz do meu algoz e pensei em dar uma porrada na fuça dele, mas o excesso de bugio não deixou. Se aproveitando que eu estava me recuperando da queda involuntária, ele colocou um papel no meu bolso e disse que teria uma festa e queria que eu fosse e que queria se desculpar por acabar com minha vida.
Resolvi comparecer, mas confesso que não tinha as melhores das intenções. Pensava em chamar ele num canto e enchê-lo de pancada. Quem sabe até fazer ele descer em um tobogã cheio de giletes com uma tina de álcool embaixo.
Ao chegar à festa, percebi que minha vingança seria mais difícil que eu pensava. Assim que entrei avistei a casa, vi os outros doi... ops, convidados e avistei uma mesa de jogo de dados e resolvi fazer uma fezinha. Na primeira jogada saiu um olho de cobra e logo percebi que era outro olho que estava correndo risco.
Passei para o 21, onde perdi o restante do meu dinheiro e depois fui para a roleta, onde o que perdi foi a dignidade. E a capacidade de sentar em superfícies duras que vai durar por algum tempo.
Já estava quase desistindo quando vi o Austregésilo na minha frente. Fui com a intenção de dar uma muqueta na fuça dele, mas fui parado com um gesto gentil do anfitrião que disse:
“Aposto que você já perdeu todo seu dinheiro”. Droga, perdi outra aposta.
Mas eu iria aproveitar a primeira oportunidade para dar cabo desse pilantra. O que eu não contava no meu plano é que eu iria encher a lata de manguaça e não conseguia mais encontrar o sacripanta.
Só recobrei a consciência quando vi a barulheira na sala e todo mundo falando que ele morreu, bateu com as 10, vestiu o paletó de madeira, foi pra terra dos pés juntos, foi pro vinagre, colocou algodão no nariz.
Agora tem um monte de pessoas aqui e uma dela é o assassino e tem uns detetives perguntando um monte de coisas para todo mundo.
O mais assustador é que uma de nós é o assassino, mas tenho certeza que não fui eu, afinal, apostei uma garrafa de caninha com o Ezequiel e com o Gilmar Fubá que dessa vez eu dava cabo do velho.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Interlúdio 11

- Cabelo, não sei você, mas achei esse cara estranho demais.
- Eu também, Neneco. Você viu esse lance dos pés?
- Pois é! E tem gente que gosta, como a tal Carminha, mas eu não sou chegado nessas vicissitudes.
- Nessas o quê, Neneco?
- Nessas vicissitudes. Essas coisas de gêmeos siameses, crianças com a cara coberta de pelos...
- Pelamor, Neneco, pela última vez, pára de falar merda! “Vicissitude” não tem nada a ver com isso!
- Ah, não?
- Claro que não. A palavra que você está procurando é “intrínseco”. Você não é chegado nessas coisas “intrínsecas”, como ter dois pés esquerdos ou seis dedos na mão.
- Oh, obrigado.
- De nada.

(...)

- Fora isso, também achei meio intrínseco esse lance do velho ter transado com a própria irmã. Será verdade, Cabelo?
- Eu nem sabia que ele tinha outra irmã.
- Temos que passar isso a limpo. Anota aí, Cabelo: “checar irmã lolita”.
- É para já. Vou aproveitar e anotar outro filme que me ocorreu agora, não sei porquê: “Chinatown”.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Heracles Calvante

Enquanto para alguns, Austregésilo é um muito bem-sucedido industrial – e como muitos, um sem-vergonha de primeira categoria – e para algumas ele é um coroa bem apessoado – leiam cheio da grana – e pervertido, para mim o desgraçado não passa de um grande feladaputa!

Mas por que tanta revolta? Por que tanta raiva dele?

Pois bem, o velho – se é que ainda joga nesse time – sempre gostou de uma ninfeta, mas ele gostava tanto dessa característica que sequer se importava em traçar a Lolita da irmã mais nova. E sim, adivinhem quem é o desafortunado resultado dessa união incestuosa? O bastardo aqui!

E, enquanto bastardo, é claro que o feladaputa desgraçado sempre me tratou como um desqualificado de terceira categoria. Eu definitivamente não aprendi nada sobre amor paternal, a menos que “sádico” seja a nova gíria que andam usando para pai.

Fora que essa história toda sempre me confunde demais. Afinal, eu sou filho do meu tio? Sobrinho da minha mãe? Primo segundo do meu pai? Tio avô de meus próprios filhos?

Pois se já não bastasse o fato de ser tratado como lixo e isso tudo ter me tornado a pessoa mais confusa que conheço, ele ainda acabou com a minha maior ambição: tornar-me o maior escritor do mundo! E como ele fez isso? Simplesmente roubando o original do livro que escrevi há muitos anos, o melhor livro já escrito em toda humanidade, o livro que me tornaria reconhecido mundialmente como o maior, mais criativo e inteligente escritor do mundo. Sem deixar de lado a modéstia, é claro.

Bastou que ele lesse a minha exuberante obra para decidir que – para o meu próprio bem, diria depois Austregésilo, enquanto ria insanamente da minha cara bastarda – ele, através de um simples engôdo, me tomasse o original e guardasse a sete chaves no cofre de seu escritório.

Então, só para frustrar de vez a minha vida, ele me obrigou a trabalhar como professor em uma das péssimas escolas para seus funcionários, num regime de semi-escravidão, impedindo que eu me desenvolvesse de qualquer maneira longe de suas garras.

Bom, depois de tudo isso que ele já me fez, o fato de ter nascido com dois pés esquerdos – maldito incesto, maldito incesto! – parece até para mim algo simples e de menor importância, apesar de ter que gastar uma fortuna em sapatos, pois tenho sempre que comprar dois pares de cada, para usar somente os pés esquerdos. Senhor, até isso é culpa dele!

Mas continuando, como eu dizia antes, se já não bastasse tudo isso que o desgraçado do meu primo segundo, digo, do meu pai-irmão, digo, do meu..., ah, do feladaputa me fez ele ainda decidiu aumentar o grau de sadismo da nossa relação, me dizendo há alguns dias que iria me tirar de seu testamento.

Caralho, depois de tudo o que já passei nessa vida por culpa dele, é muito injusto que eu não fique com a fatia do bolo que me é de direito quando o desgraçado resolver embarcar para o inferno que lhe está reservado. E a fatia, mesmo que pequena, há de ser considerável, pois apesar de ser o monstro inescrupuloso que é, se tem uma coisa que ele sabe fazer nessa vida, é dinheiro!

Então eu tinha que falar com o velho de qualquer maneira, de forma suficientemente persuasiva, para obrigá-lo cruelmente, digo, para convencê-lo suavemente a mudar de idéia quanto a isso. Tenho certeza que a leve ameça de divulgar todo o tratamento que ele dispensou à minha finada mãezinha, desde sua época de lolita, até a sua morte suspeita e desamparada, o faria mudar de idéia. Caso contrário, bem, uma pessoa desesperada – e temporariamente insana – é capaz de muitas coisas, não é mesmo?

E não é que, enquanto matutava para descobrir uma forma de fazer o sobrinho-irmão bastardo do desgraçado do Austregésilo mudar essa história de ficar fora do testamento, o próprio velho sádico criou a oportunidade: sua festa de aniversário!

Sim, essa festa seria perfeita - apesar da corja de familiares e amigos, não menos inescrupulosos e indecentes do que o velho - para me dar uma oportunidade de falar a sós com o velho. Então, vestindo o meu melhor pior terno herdado do sem-vergonha do meu primo-avô, esperei até o dia – sim, esperei diversos dias já vestido, a escola estava em período de férias e eu não tinha mais o que fazer mesmo – da festa, quando saí de encontro ao meu destino.

E ao destino do meu “paizinho querido” – finalmente acertei? –, é claro!

Pois chegando à festa do velho feladaputa, não me surpreendi com o clima ameno e agradável que envolvia o grupo de convidados. Ah, que sensação reconfortante era ver tanta gente com raiva da mesma pessoa. E olha que ninguém falava comigo, pois quem se dignaria a falar com o neto-compadre bastardo do anfitrião?

Dessa forma, a única coisa a fazer era ir direto ao encontro do velho. Talvez pela minha cara nada amigável, ou ao cheiro oriundo dos dias de espera já vestido – era verão, meus amigos – todos abriam caminho para mim e não foi nada difícil chegar ao lado do velho e chegar dizendo, usando nossos tratamentos já costumeiros, é claro: “Você quer que eu comece a jogar a merda no ventilador daqui mesmo ou prefere um lugar mais tranqüilo, hein, feladaputa?”

Não para a minha, mas talvez para a surpresa de alguém desavisado, o velho deu um tapa na bunda do garçom que passava ao seu lado naquele momento – ou seria algum ícone do pornô nacional que também era convidado? Admito que acredito já ter visto o elemento em algum antro – o velho riu de maneira mais sádica do que o usual e me disse para ir ao seu escritório.

Acontece que no caminho algo me interrompeu. Não é que, apesar de andar um tanto quanto afeminado ultimamente, o velho feladaputa ainda não havia perdido o seu gosto por lolitas? Digo isso, pois nesse instante avistei a nova camareira da casa, Carminha, uma coisinha linda de apenas dezessete aninhos que, a julgar pelo seu olhar obsceno, fazia muito mais do que apenas arrumar os quartos da mansão.

E não é que nesse momento esqueci de tudo, até mesmo do velho feladaputa? Acontece que se tem algo que eu puxei do velho, não foi a sua capacidade de fazer dinheiro, mas sim a minha grande tendência a me interessar por uma sacanagem, especialmente com uma coisinha linda como a jovem Carminha. Meu Deus, que coisa. Nessa hora, a única coisa em que conseguia pensar era numa forma de conquistar a jovem camareira e traçá-la ali mesmo, na casa do velho, o que certamente seria uma ofensa.

Logo de cara tentei apelar para seu gosto literário, o que não deu muito certo, pois Carminha não era do tipo que lia. Quando ela já estava quase indo embora, cansada de minha tentativas frustradas, apelei para o extraordinário, contando-lhe sobre meus dois pés esquerdos!

Ah, como foi lindo ver seus olhos brilharem ante a eminência do bizarro! Ela queria ver esse prodígio da natureza e, disposta a tudo, me acompanhou ao quarto do velho, onde ela veria meus dois pés esquerdos. Além de outras coisas, é claro.

Depois de algum tempo – eu já nem pensava no velho – estava admirando toda a exuberância juvenil de Carminha espalhada na cama, quando aquele mordomo esquisito do velho entra correndo no quarto e, sem nem reparar na doce camareira completamente nua a admirar meu sedutor par de pés esquerdos, – ele não reparou na Carminha pelada! – começa a falar algo. Percebe-se que usei esquisito como eufemismo para outra coisa, não é mesmo.

Em meio a suas palavras desconexas e nervosas – tenho certeza de que ele narrará a história depois todo controlado, como se fosse um mordomo inglês – ficou claro que algo muito errado estava acontecendo. O velho tinha sumido por um tempo e o encontraram morto, sem que ele tivesse tempo de saber que eu tinha comido a Carminha.

Agora todos eram suspeitos e, assim, até morto o velho me atrapalhava. Eu queria voltar para junto da daquela coisinha linda e indecente, mas um detetive metido a “Ed Mort” tinha chegado para entrevistar a todos e eu teria de esperar para ver o que aconteceria.

E quanto ao velho ter aparecido morto? Feladaputa como era, tenho certeza de que muita gente queria vê-lo assim. Já eu, só quero continuar “mostrando” meus pés esquerdos para a Carminha...

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Interlúdio 10

- Que cara é essa Neneco?
- ...
- Neneco, não me olha com essa cara!
- ...
- Caramba, Neneco, você me conhece desde pequenininho!
- Por isso mesmo. Já te achava meio viado desde a época que a gente brincava de médico na casa do tio Vladimilson.

(...)

- Pela última vez, Neneco, a gente nunca teve um tio Vladimilson.
- Jura sobre a Bíblia?
- Juro.
- Aliás, aproveita que você tá com a mão aí e jura que encontrou o corpo no corredor. Porque esse amancebado aí disse que viu o corpo na biblioteca!
- Juro!
- A terceira pergunta eu acho melhor não fazer. Manda entrar o próximo, Na... digo, Cabelo. Até porque precisamos ver se tem outro alguém com um motivo ainda melhor do que a herança para matar o Velho.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Danton Varejão

Danton, Danton Varejão.
Anotou? Idade? 28. Ah, tá bom, 32. Ok, 36 e não se fala mais nisso. Convidado? É claro que eu fui con-vi-da-do! Há anos o Velho me convida para as festas dele. Ele me chama antes pra fazer o feng shui do salão de fes-tas, e depois me convida para ficar. É claro, é isso que eu faço, eu sou o consultor ho-lís-ti-co do Velho. Não, eu não era o con-sul-tor holístico dele, eu sou o consultor ho-lís-ti-co dele porque mesmo no plano superior, ele se comunica co-mi-go, meu caro. Mas é lógico! O Velho e eu tínhamos e temos um relacionamento astral, que transcende a matéria!
Bem, o que aconteceu? Eu che-guei aqui às 3 da tarde e fui conduzido aos meus aposentos pelo senhor Cabelo. Aposentos? Sim, sem-pre que eu ia passar mais de poucas horas aqui, o Velho me disponibilizava uma suíte, para que eu ficasse mais à vontade. Pois é, gente coisa é outra fina. Bem, nos meus aposentos eu fiz minhas abluções e tomei um lan-che reforçado, trazido pelo senhor Cabelo. Lanche, ué, claro, se eu estou fra-co e fa-min-to, meu terceiro olho não vê o além! Pois é. Bem, após meu lanche, desci para o salão de festas, onde o Velho recebia a decoradora para os últimos detalhes da arrumação. Bem, eu tirei meu pên-du-lo do pescoço e andei pela sala checando as energias que fluíam e as que em-pa-ca-vam. Sim, tudo estava bem. Quer dizer, alguns sofás pre-ci-sa-vam ser mudados de lugar porque o chi do canto noroeste da sala não estava fluindo de forma natural. Chi? O que é chi? Ah, se o senhor não sabe, eu não vou explicar, é um lance assim de uma energia que ro-la, entende? Não? Deixa pra lá. Bem, após a mu-dan-ça de sofás, a bruaca, digo, decoradora foi embora e eu fui botar tarô par o Velho. Tarô? Claro que eu en-ten-do de tarô, oras, e eu não disse para o senhor que sou um consultor holístico? Com que mais mexe um consultor ho-lís-ti-co? Meu caro, com tudo que en-vol-va a alma e seu crescimento. Tipo o que? Ah, Deus, como é de-sa-gra-dá-vel lidar com leigos... bem, eu me especializei em feng shui, terapia com cristais, florais, terapia e regressão à vidas passadas, es-tu-do dos trânsitos do sol, da lua e dos pla-ne-tas, comunicação com anjos, comunicação com es-pí-ri-tos, manifestação de efeitos astrais no plano físico, enfim, toda uma sor-te de atividades no cam-po da ciência holística, que eu não espero que o senhor entenda. Como eu ia dizendo, botei cartas para o Velho e a verdade se revelou. Sim, sim, sim. Como eu sei? A carta do enforcado saiu duas vezes para o Velho du-ran-te a sessão. Maus presságios, muito maus. Meio abalado, o Velho foi tomar banho e descansar antes da festa. E eu fui passear nos jar-dins com o Naná. Digo, com o senhor Cabelo. Bem, passeamos, passeamos e...como? Se eu chamei o senhor Cabelo de Naná? Que é isso, de forma alguma! Nã-nã-ni-nã-não! Tenho pelo senhor Cabelo estima e respeito profissionais. Após o pe-que-no passeio, eu me dirigi para meus aposentos para tirar as folhas dos cabelos e me pre-pa-rar para a festa. Folhas nos cabelos? Se eu me deitei na gra-ma? E porque eu me deitaria na grama com o senhor Cabelo? Ora, e quem falou no senhor Cabelo? Eu? Não foi o senhor?
O senhor está me con-fun-din-do, depois do passeio eu fui para meus aposentos, tomei banho de es-pu-ma, lavei a cabela com shampoo to-na-li-zan-te, coloquei meu smoking de ce-tim doirado, minhas botinhas de pe-li-ca, e desci para os folguedos.
Sim, algumas pessoas já haviam chegado, claro. Quem? Ora, De-te-ti-ve, as pessoas de sempre, não eram muitos os que aturavam o Velho, convenhamos. Dei um bordejo, comi uns salgadinhos de camarão, tomei uns birináites tra-zi-dos pelo senhor Ca-be-lo que é muito gentil e depois acomodei-me com os outros convidados para o jantar. O jan-tar? Foi agradável. Bem, se o senhor quer saber, a co-dor-na estava meio seca, os camarões estavam aguados, o mo-lho estava mal tem-pe-ra-do e o vinho, sinceramente...o quê? Ah, sim, desculpe, retornemos. O jantar correu sem grandes dramas. Após o jantar, cha-ru-to, li-cor para as senhouras, conhaque para os cavalheiros, conversa amena. Então, deu-se a desdita. Qual desdita? Bem, Naná, quero dizer, o senhor Cabelo sentiu câimbras. Câimbras horríveis, pobrezinho. E, bem, enquanto consultor holístico, sou formado em Massagem Indonésia Relaxante de Alto Impacto. É uma técnica oriental de massagem, coisa seríssima, ciência pura. Então, fomos até os aposentos do senhor Cabelo, onde eu lhe dei um trato, quero dizer, onde eu lhe apliquei uma belíssima massagem que o deixou novo em fo-lha. Após a massagem eu deixei o senhor Cabelo se re-cu-pe-ran-do e rumei de volta ao salão para reunir meu eu físico com o dos outros con-vi-da-dos. E foi exatamente neste momento em que eu ouvi um gri-to. Um grito apavorante, horroroso, assustador. Um grito não-humano, Detetive, ouça bem o que eu lhe di-go, eu estou acostumado a lidar com o Insondável, com o Inominável, com o Insofismável, com o...o quê? Tá, desculpe. Bem, eu corri em direção ao grito, entrei na biblioteca e vi o corpo físico do Velho ali, esticado no chão, com uma fa-ca nas costas. Que horror, Detetive. Olha, lamentável. Mas então, quando todos es-ta-vam ali sem saber o que fazer, o senhor Cabelo, aquele homem vi-go-ro-so e safo, teve a diligência de cha-mar o senhor para resolver essa história. Eu? Eu não tinha mo-ti-vo nenhum para matar o Velho, faça-me o favor, Detetive! O Velho era quem sus-tem-ta-va esse meu modo de vida luxuoso e de glamour! Detetive, graças à consultoria holística que eu presto para o Velho é que eu posso viver no luxo e na opulência, Detetive! Eu já-mais faria isso! E depois, pense bem, uma facada nas costas, o Velho ali caído de qualquer jeito, jogado, em estado lamentável, san-gran-do, babando, credo. Eu jamais faria isso, se eu fosse matar alguém eu...não, quero dizer, eu JAMAIS mataria alguém. De-te-ti-ve, nunca, nun-ca. É, sim senhor, basicamente é só isso que eu tenho a dizer. Números azuis? O Velho ti-nha números azuis gravados no braço? Ah, sim, Detetive, veja bem, isso é parte do nosso ritual holístico.
Sim. Bem, entenda, Detetive, eu realizava todo um trabalho de interligação cós-mi-ca astral com o Velho, para que ele, a nível de ser hu-ma-no enquanto pessoa, fizesse uma re-li-ga-ção sensorial com seu eu mais profundo. O senhor? Não Detetive, com o seu eu dele, não o seu eu do senhor. Pelo amor da Deusa! Isso. E nós fazíamos toda essa religação sensorial através da numerologia, outra ciência holística na qual sou especializado. Assim sendo, os nú-me-ros no braço dele foram es-cri-tos ali como parte de um processo de crescimento interior de dentro, en-ten-de? Ora, não por isso, não me agradeça, tenho prazer em ajudar a lei, ainda mais quando ela representada por um ra-pa-gão tão bem apanhado quanto o senhor! O que, mais uma pergunta? Cla-ro, pois não. Que fo-to? Ah, a dessa senhoura sobre a escrivaninha? O senhor achou essa senhoura parecida comigo? Espero que sim, Detetive, pois essa é minha falecida mãe, irmã do Velho. Eu sou o sobrinho dele e único her-dei-ro, o senhor não sabia?

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Interlúdio 9

- Cabelo, tava aqui pensando...
- O que?
- O que são mesmo “derivados de polipropileno”?
- Sei lá, Nen, acho que tem a ver com canudos.
- Canudos?
- É, esses canudinhos de beber coca-cola.
- Ah, fala sério! E você acha que uma fabriqueta de canudinho de plástico ia ter um setor inteiro dedicado a luzes da Natal? Isso é coisa dos grandes capitalistas...

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Daniell Rezende

Meu nome é Daniell Rezende e já não imito o Frank Sinatra há quinze dias.
Trabalho em uma grande empresa da área de derivados de polipropileno. Nunca cheguei a entender o que são esses derivados de polipropileno, porque eu trabalhei quase o tempo todo no setor de luzes de Natal. Eu era um dos responsáveis por comprar as luzes que enfeitariam a recepção da empresa no fim de ano. O trabalho era tranqüilo a maior parte do tempo, mas do começo de dezembro até janeiro era bastante estressante.
Para tornar a tarefa mais leve e agradável, decidi fazer uns desenhos com as luzes. Era um desafio, como eles gostam de dizer aqui na empresa, principalmente porque eu só sei desenhar caricaturas da seleção de 82. E ainda assim, bem mal. Tão mal que ficam mais parecidas com caricaturas da seleção uruguaia de 70. Foi isso que acabou comigo.
Veja você que o presidente da empresa tinha uma bronca qualquer com a seleção uruguaia de 70. Quando viu aqueles meus desenhos, feitos com as pequenas luzes de Natal, quis saber quem foi o responsável. Assumi a culpa e ele achou que devia me transferir para uma área da empresa onde eu seria menos nocivo: o setor de assassinatos da empresa.
Passei a ser responsável por matar as pessoas que faziam lobby contra a produção em massa de derivados de polipropileno. Não são muitas, porque pouca gente sabe o que são os derivados de polipropileno – e a maior parte não acha muito ruim o fato de eles serem produzidos.
Uma dessas pessoas, como vocês devem saber, era o Austregésilo. Era um senhor mau-humorado, do tipo que furava a bola de futebol do vizinho quando caía no quintal dele. Até que cansou de reclamar com os vizinhos e decidiu encrencar com os fabricantes de derivados de polipropileno.
Exterminar o velho era a minha primeira tarefa no novo departamento. Quando souberam que ia haver uma festa na casa dele, deram-me um convite falsificado para entrar. Recebi também um uma foto do Austregésilo vestido de Pernalonga em uma festa a fantasia.
Sou péssimo fisionomista, mas com algum esforço consegui memorizar aquele rosto. Orelhas grandes, pêlos cinzas, dentes em destaque, sempre comendo cenoura. Não seria difícil identificar esse sujeito entre as pessoas da festa.
Sim, eu fui à festa para matar o Austregésilo. Mas isso não quer dizer que o tenha feito. Sou inocente.
Veja você que nunca matei ninguém. Sequer saberia como fazer uma coisa dessas. O teste vocacional que fiz antes de ir pra faculdade já dizia que eu não levava jeito para assassino. Além do mais, não tenho porte de arma. A única arma que me deram para cumprir a missão era um sorvete de chocolate da 4D. No copinho, não na casquinha.
Não entendo como alguém conseguiria matar uma pessoa com um sorvete de chocolate. Se ao menos fosse na casquinha, talvez eu conseguisse pensar em algo.
Então, consegui entrar na festa. Estava bem animada. Alguém havia batizado o ponche ou coisa assim. No tumulto, não conseguia encontrar ninguém que se encaixasse na imagem que eu conhecia de Austregésilo. Conversei com o mágico que se apresentava e ele também não sabia de nada. Tentei ver se o pônei ou os fantoches poderiam me dar alguma dica de onde encontrar o velho. No entanto, ninguém quis abrir a boca. O velho parecia ser influente.
Eu tinha pouco tempo. O sorvete de chocolate já estava derretendo.
Foi quando resolvi circular pela casa e vi um senhor jogado no chão. Pensei que fosse um dos convidados bêbados. Mostrei para ele a foto que eu tinha do Austregésilo e perguntei:
- Você viu este homem?
Ele se negou a falar. Por mais que eu o pressionasse, não dizia nada a respeito do dono da festa. Nem se mexia. Foi aí que suspeitei que o homem estivesse morto. Fiz o teste, para ter certeza: puxei papo sobre o futebol, falei da pouca-vergonha dos cartolas dos grandes clubes. Ele continuou em silêncio. Dei meu preciso diagnóstico:
- É, está morto.
Para não ser incriminado, voltei à festa, agindo como se nada tivesse acontecido e dancei uma polca ou duas com uma das fantoches. Desisti do trabalho e tomei eu mesmo o sorvete de chocolate.
Só depois fiquei sabendo que o morto era Austregésilo.
Não fui eu que matei o velho. Mas, de certa forma, minha missão está cumprida. Talvez consiga um aumento lá na empresa. Ou pelo menos uma vaga melhor para estacionar o carro.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Interlúdio 8

- Sujeitinho esquisito.
- Chato, você quer dizer.
- Também. Pedinte é a palavra.
- Pedinte? Neneco, pedinte é mendigo.
- É? Achei que era pretensioso, metido a sabichão.
- Ah! Você quis dizer pedâneo.
- Não, eu quis dizer pedinte mesmo, porque eu achava que era o que eu queria dizer. Não ia querer dizer pedâneo, se eu nem nunca ouvi essa palavra na minha vida! Caramba, Cabelo, você também às vezes é pedinte com esse negócio de palavra.
- Tá, Nen, não precisa ficar nervosinho, não tá mais aqui quem falou. Voltemos ao “Alceu dispor”. Neneco, o cara ouviu tiros e fugiu.
- E daí?
- Tiros, Neneco.
- E DAÍ?
- DAÍ QUE A PORRA DO VELHO MORREU ESFAQUEADO! SERÁ QUE EU TENHO QUE FICAR TE LEMBRANDO ISSO TODA HORA?
- Hum, não tinha pensado nisso.
- Fora que ele é a primeira pessoa que interrogamos que fala sobre tiros (aliás, Neneco, não adianta ficar perguntando coisas pra televisão, vídeos não respondem).
- Bem observado, meu caro Cabelo. Acho que estamos cada vez mais perto da solução desse mistério.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Alceu, o Biógrafo

Falar o que aconteceu? Tudo bem, pra mim é fácil. Vivo disso. Falar o que aconteceu, está bem. Falar o que acontecerá? Não, isso não me pedem. Tudo bem, não sou vidente. Mas ainda pedem pra eu falar o que aconteceu de graça! Ora, isso não é mais meu trabalho.

Pois bem, primeiro vou me apresentar para evitar confusões com algum desses criminosos que tiveram a pachorra de assassinar meu grande amigo Austregésilo. Me chamo Alceu, Alceu Silvino Garcia, ao seu dispor. Percebeu o que eu fiz nessa frase? Chama trocadilho. É uma coisa que nós, escritores, fazemos... (risos) É para poucos...

Enfim, sempre escrevi muito. Tenho dois romances, nenhum publicado. Me recuso a me rebaixar a esse mercado editorial que só quer explorar. Esse é o papel de nós, artistas... (joga o cachecol para trás) Mas enfim, se vocês quiserem ler, ou, sei lá, tiverem uma editora e quiserem publicar, tô aí.

Estudei com Austregésilo por algum tempo, na juventude, antes da minha família perder tudo. Viventes da cultura passam por dificuldades antes do reconhecimento da genialidade aparecer. (ouvem-se algumas risadas no fundo, Alceu responde mostrando o dedo do meio e volta ao depoimento).

Depois desses contatos, nos encontramos poucas vezes até que, três meses atrás, recebi um telefonema de Austregésilo. Queria saber se sou escritor, mesmo. Lógico que respondi que sim. Ele disse “Ótimo, venha ao meu escritório hoje”. (as aspas foram feitas com os dedos do biógrafo) Fui, e ele me disse que, por causa de sua longa carreira, queria ser biografado. Pagaria bem, o meu trabalho seria todo publicado e financiado pela empresa. Sou um artista independente, mas o dinheiro me viria a calhar. Seria interessante me afastar da minha ficção lúdica e, entretanto, profunda, para me aventurar na exploração da vida de um reles mortal.

(nisso, ao fundo, uma voz feminina rouca grita “Alceu, já foi me buscar o joelho de porco? O hóme do açougue não vai segurar por muito tempo aquele preço, ô!”. Alceu grita “Já vai, tia” e continua a falar para a câmera.)

Acertamos os detalhes e, então, passei esses meses revirando fatos e mais fatos da vida de Austregésilo. Enquanto analisava de perto a sua extensa coleção de revistas pornográficas, vi cair um envelope assinalado como confidencial. Abri o envelope e vi, dentro dele, uma chave e um endereço. Como tinha que sair para comprar lenços de papel, para manter a higiente durante a pesquisa do dia, resolvi conferir o que aquela chave escondia.

Demorei a achar o endereço, pois nós, artistas, costumamos ter o senso de direção semelhante ao de um passarinho bêbado. Era um galpão velho, trancado a cadeado. A chave encaixou perfeitamente, e consegui entrar. Lá dentro, um freezer. Abri o freezer e não poderia ficar mais chocado: estavam lá uma perna humana e um disco do Roberto Carlos. O disco estava autografado, e com um recado: “Obrigado por guardar meu segredo. Se soubessem dos meus seis dedos, jamais seria considerado rei. Agradeço profundamente, mas peço com todas minhas forças, guarde sigilo! PS: Valeu também pela perna de pau. Um charme! Adoro me vestir de pirata mesmo, unimos o útil ao agradável.”

Era uma bomba! Não poderia deixar passar um fato de tamanha importância fora da biografia. No dia da festa organizada para Austregésilo, fui conversar com ele. Ele me proibiu de publicar qualquer coisa relacionada à sua relação bizarra com Roberto Carlos. Brigamos muito, e resolvi continuar meu trabalho longe dele. E ainda gritei “Biografia de vivo não vende nada se não tiver escândalo!”. Ele continuou gritando asneiras, mas dei meia volta e saí. Pouco tempo depois, ouvi barulhos de tiro. Estou tão aflito com a morte de Austregésilo quanto qualquer outra pessoa, e sinto muito por sua família. Mas nós, artistas, colocamos o trabalho em primeiro lugar!

Por isso estou viajando. Esse é um trabalho voltado ao mercado editorial, por mais que eu o evite. Tenho todo o direito de vender essa biografia para uma editora, e ninguém vai me proibir! Estou concluindo o livro, enquanto moro com minha tia e ajudo ela a cozinhar pra fora. Depois, vou ter o meu reconhecimento como escritor.

Aliás, agora vou declamar um poema que fiz em homenagem à minha tia: (ergue uma mão para o ar, faz cara de sentimento e declama, sentimental) “Joelho de porco, oh, pobre porquinho manco...”

(Ele continua a declamar por alguns minutos, até que a sua tia lhe manda buscar o joelho de porco debaixo de tapas.)

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Interlúdio 7

- Bom, Cabelo, já tomamos o depoimento do carpinteiro bolado, da chacrete celebration, do anjo morto-vivo, do escritor e do altão. Quem falta?
- Sei lá quem falta. Como eu vou saber?
- Porra, você é o mordomo, devia ter uma lista dos convidados!
- Lista? Deixa eu ver, tenho umas listas aqui sim: hum, não, essa é da lavanderia, essa do mercado e essa com os filmes que eu quero alugar. Toda vez que eu vou na locadora me dá um branco, então vou anotando tudo aqui, ó, quer ver: "Obsessão, do Frotinha", "filme da Rita Cadillac", "Cidadão Ka..."
- Não quero saber o que você quer alugar, Cabelo! Quero saber, pelo menos, se todo mundo que tava aqui vai dar ou já deu um depoimento!
- Agora que você mencionou... Parece que alguém foi embora. Eu vi de longe, mas não sei bem o que aconteceu.
- E por que você não barrou o figura?
- Porque eu estava ocupado, anotando um filme na minha lista.
- Espero que seja um ótimo filme, Cabelo, para você ter deixado alguém escapar.
- E era: “Murder by Death”.
- Hum, esse aí é bom mesmo. Mas o que vamos fazer com o cara que se mandou?
- Ah, não esquenta, não. Me avisaram que ele deu a palavra de honra que mandaria um vídeo.
- E você acredita em palavra de honra, Cabelo?!
- Ué, claro que acredito! Quando me contratou, o Austregésilo, por exemplo, deu a palavra de honra dele que eu ganharia até 10 mil sem sair de casa.
- Mas você ganha 10 paus?
- Eu ganho 500 por mês, mais vale transporte. Ele disse "até 10 mil".
- E esse lance de trabalhar em casa?
- Então, quando aceitei, tive de me mudar para cá.
- Sei.
- De qualquer forma, a empregada me disse que chegou um pacote do tamanho de um livro escrito: “Alceu, o biógrafo”. Deve ser o vídeo, vou lá pegar. Aliás, fita de vídeo, que coisa mais século passado, vou ter que pegar também o aparelho lá no sótão, já volto.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Interlúdio 6

- Cara... Nunca ouvi nada mais estranho!
- Podecrê, Neneco! O Ronald diz que viu o Austregésilo antes de ir à lavanderia, onde encontrou com o Von Doscht e trocou de camiseta. Mas o Von Doscht disse que viu o Austregésilo – e com uma faca nas costas – antes da suposta fumaceira que o Velho levantou com o Ronald!
- Hã? Do que você está falando?
- Dos depoimentos, Neneco! Os depoimentos deles não batem, não é isso que é estranho?
- Ah, não! Por estranho eu estava me referindo ao combo trakinas com mortadela. Será que dá um bom blend?
(...)
- A propósito, esse cara não parece aquele ator?
- Que ator?
- Aquele que fez aquele filme que ele é um jogador de basquete.
- Não tô lembrado, mas com esse tamanho, em vez de estar traficando, ele devia mesmo jogar basquete!
- É, mas o moleque é talentoso. Viu a idéia dele do carnê? Empreendedorismo, é disso que o Brasil precisa.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Ronald Rios

Eu não matei o cara. Eu sei que parece muito óbvio e suspeito chegar falando isso, mas o que vocês queriam que eu fizesse? Chegasse comentando a prisão da Paris Hilton? Chegasse falando da versão extendida de "One Night In Paris", com mais uma hora de boquete-com-nojinho? Chegasse falando da versão brasileira do Simple Life, programa que lá fora é estrelado pela Paris Hilton? Eu aposto que alguém falou sim para alguma dessas - se não para todas as - alternativas. Então vou falar:

- 23 dias, cara. Em prisão especial. Quando saiu, lhe foi oferecido 1,5 milhão de dólares para dar uma entrevista. Quando pegaram o Tracy Morgan, fizeram o louco usar uma coleira. É um mundo muito bom para ser branco.

- Não vai ter anal. Paris Hilton não tem cara de que topa anal. Paris Hilton fazendo anal é tão impossível quanto eu ser o cara ali nesse anal. A versão extendida de de One Night In Paris será mais uma hora daquele boquete com a vontade de quem vai subir um morro. Assim, tem gente que quer subir um morro com toda a disposição. Em geral, Católicos querendo chegar na Igreja da Penha; ou viciados que queiram chegar no topo do morro para descolar sua farinha do dia. Porque sim, existem viciados que sobem morro por não saberem que existem bocas ao nível do mar. Mas então, sabe essa disposição? Não é a disposição da Paris chupando.

- Menor idéia de quem seja Ticiane Pinheiro. Mas Karina Bacchi é A Mulher do Piercing no Clitóris. Você tem que gostar dum ser humano com essa descrição.
Mas eu não matei o velho. Éramos amigos. Tipo Karina Bacchi e Ticiane Pinheiro. Eu ouvia suas histórias e ele comprava minha erva. Eu disse erva? Avon, eu disse Avon. Esse teclado tá meio ruim.

Ok, erva. Buh. Me prenda!

Péra, não me prenda. Um crime de cada vez.

Então ele comprava minha erva e ficávamos conversando por horas. Era um coroa divertido. Às vezes atrasava no pagamento, mas não dá para confiar na memória de quem fuma maconha para te pagar, né? Por isso eu fiz um carnê. É feito com um papel bem duro, para o cliente não fazer de seda na hora do aperto. E quando tira a folhinha, pode usar aquela folha menor - aquela que sobra, sabe? - de filtro pro baseado. Esse sistema me dá um certo orgulho. Todo mundo se diverte e não esquece de me pagar.

"E se perder o carnê?"

Bom, foi o que aconteceu com o Austregésilo. Ele havia atrasado o pagamento do carnê. Mas antes que levantem a hipótese deu ter matado o velho por atraso, eu já aviso: eu não mato meus clientes. Simplesmente porque meus clientes eram todos velhos e tem o Estatuto do Idoso rolando aê. Ninguém que desrespeitar essas leis.

Meus clientes eram velhos porque eu decidi pegar um mercado que não pode subir favela, assim eu não me metia em confusão com as facções criminosas. Essa galera às vezes pode ser meio agressiva. Mas eu não, eu tento vender o meu bagulho na base da camaradagem. Converso, preparo um lanchinho, e enrolo para os que têm mão muito trêmula.

E enrolando um para o Austregésilo, conversávamos:

- Mas o senhor vai me pagar hoje, não é Astra?
- Sim, Ronald.

Gostava do Austregésilo porque ele sempre me chamava de Ronald, que ao contrário de todos os velhinhos de histórias fictícias, sempre chamam as pessoas de "meu filho". Pela idade, não deveriam falar "meu neto"?

- Bacana. Porque eu gosto muito do senhor para te matar.
- Hahahaha! Você sempre fazendo essas piadas de homicídio a quem está inadimplente!
- Isso, essas... essas piadas. Mas me diz, vai me pagar, né? Pega a carteira antes de acender a vela, Astra.
- Pagar o quê?
- O bagulho de semana passada.
- SEMANA PASSADA EU ERA O ROMÁRIO DEIXA O BAGULHO DE SEMANA PASSADA PRA SEMANA OITAVA.

Num vacilo onde tinha largado o baseado para pegar o peito de peru numas de preparar o lanche da larica, o Astra já havia acendido o beque. Confesso que fiquei nervoso. Eu tava contando com aquele dinheiro para pagar a minha natação. Já ia ser o segundo mês consecutivo que eu não iria pra natação por culpa do Austregésilo.

Não mexe com o dinheiro da minha natação.

Mas me acalmei e deixei passar esse vacilo do Astra. Não me acalmei do nada, é claro. Como dali não ia sair muita coisa, resolvi fumar unzinho para fazer a cobrança depois.

Veio a larica.

E o Astra comendo Trakinas com mortadela.

Mas eu não, eu tenho uma larica diferente.

Eu gosto de me vestir.

Coloco sapato bico-fino, bota de cowboy, chapéu de marinheiro, tubinho preto, a porra toda.
E saí na vibe de arrumar uma camisa de botão limpinha. A minha tava toda suja de Tang de Morango. E foi isso que fiz o resto da noite.

Quando saí do quarto, o Astra tava se acabando no Sucrilhos com Sprite. E é assim que ele vai ficar na minha memória.

Vai com Kellogg, Astra.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Interlúdio 5

- Hahaha, Cabelo, você mandou o figura pra lavanderia?
- Idéia do Austré. Ninguém pode dizer que o velho fela não tinha senso de humor.
- “Viagem no tempo”, grande porcaria. O cara devia era escrever um livro sobre como envelhecer sem rugas. Você viu a foto? Parece que ele tem 19 anos!
- E os cabelos?
- Pois é. E os seus Telinho, que já tá dando pra contar nos dedos...
- Vida injusta... Não me chama de Telinho! Ei, você não me disse que tinha encontrado alguém com a camisa empapada de sangue.
- Não era eu.
- Como assim, não era você?
- Não era eu, eu nunca vi esse cara.
- E a camiseta? Ele disse que entregou pra você.
- Bom, vou procurar, mas como não era eu na hora que ele me deu, vai ser complicado eu me lembrar de onde coloquei. Fora que é incólume revistar essa casa inteira.
- Mesquita, Mesquita... você sabe o que é incólume?
- Claro que sei. É o mesmo que “necessário”. Não?
- Tsc, tsc... Aprenda com o papai: “incólume” é uma classe de insetos, anta.

terça-feira, 31 de julho de 2007

Gabriel Von Doscht

Olá, me chamo Gabriel Von Doscht e, certamente, vocês já devem me conhecer. Sou um famoso escritor em ascensão no universo da literatura. Meus livros, apesar de não venderem muito, são parcialmente conhecidíssimos. Vi nesta festa uma excelente oportunidade para emplacar o meu novo livro, chamado “Viagem no Tempo for Dummies”, além, é claro, de rever o meu velho amigo de infância, o Austregésilo.
Quando criança Austregésilo tinha os melhores brinquedos, as melhores roupas, os melhores troféus. A inveja que Austregésilo despertava em todos os outros meninos era tão grande que ele teve de ir embora do nosso bairro. Eu nunca mais o vi desde então, por isso, essa festa era muito importante para mim.
Ao chegar na festa fui recepcionado pelo mordomo, ao qual perguntei onde seria o melhor local para montar minha banquinha de autógrafos. O mordomo me indicou a lavanderia da mansão. Um ótimo lugar, segundo ele, para se vender e autografar livros.


Eu na banca de autógrafos. Foto tirada por mim mesmo

Não demorou a aparecer o primeiro comprador, o próprio Austregésilo, que estava passando por ali com uma faca enfiada em suas costas.
- Opa, Austregésilo. Dando uma voltinha?
- Hrruuu... – disse o Austregésilo.
- É sempre bom pegar um ar, né?
Austregésilo continuava a se arrastar, resmungando e ignorando a minha pergunta.
- Austregésilo! Sou eu, o Fimose, lembra?
- Oorhg... – me respondeu.
- Filho da Bernadete, cara. – insisti.
Ele continuou a não me dar atenção. Logo constatei que Austregésilo havia se tornado tudo o que havíamos prometido nunca nos tornarmos: Um maldito velho arrogante com uma faca enfiada nas costas. Isso, de certo modo, me fez ficar muito puto. Tive vontade de enfiar uma faca nas costas daquele crápula, mas não o fiz, visto que ele já tinha uma faca enfiada nas costas. Maldito, sempre um passo à frente de todos. Deixei que fosse embora, ele e sua lustrosa faca enfiada nas costas.
Sempre querendo ser o centro das atenções.
Não demorou muito para chegar o segundo possível primeiro comprador do meu livro. Era um rapaz grande, com um pandeiro em uma mão, um mp3 player na outra e uma camiseta branca com uma enorme mancha vermelha, parecia estar nervoso, procurando por algo. Sorri e puxei conversa.
- Opa, opa, opa. Chegue mais, meu querido. Qual o seu nome?
- Hã... Como? Meu nome? Pra que? – gaguejou.
- Oras, para eu autografar um livro para você, meu amiguinho.
- Na verdade eu não quero o seu livro.
- Não? – decepcionado perguntei.
- Não, não. Eu preciso de uma camiseta limpa. A minha... Bom, a minha tá suja de... de vinho. – explicou-me o rapaz – Por isso vim aqui na lavanderia.
- Bom, mas camisetas eu não tenho. Somente livros e autógrafos.
Vendo que eu não estava ali para brincadeiras, o rapaz disse que compraria um livro e que eu poderia autografá-lo, mas que para isto acontecer eu teria de trocar de camiseta com ele. Claro que eu aceitei sem pestanejar. Instantes depois eu estava usando a camiseta manchada de vermelho.
- Mas então... Qual seu nome? – perguntei.
- Pra que?
- Pra eu autografar, oras.
- Ah... Ronald Rios.
Peguei a caneta, abri um livro e comecei a autografar. Quando levantei os meus olhos o tal Ronald Rios não estava mais lá. Havia se mandando com a minha camisa limpinha.
Fiquei na banquinha o resto da noite e nenhuma alma viva passou por lá para pegar um autógrafo. Eu já estava começando a suspeitar que uma lavanderia não era um local apropriado para uma noite de autógrafos, até que apareceu um sujeito muito estranho, com uma coxa de galinha na mão. Ele olhou para mim, grudou os olhos na mancha da camiseta que eu usava, fez uma cara de “desvendei o crime” e disse:
- Alto lá, meliante. Sou o Detetive Mesquita.
Sorri, peguei a caneta, abri um livro e comecei a autografar.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Interlúdio 4

- Neneco, você viu isso?
- Não consegui despregar o olho.
- O cara tem uma lesma saindo e entrando do ouvido, que nojo.
- Cabelo, não entendi direito. O cara é anjo ou zumbi?
- Pelo que eu entendi anjo-zumbi.
- Ele tá mentindo, Cabelo, isso não existe! Ou é anjo ou é zumbi, os dois juntos não pode.
- Então se fosse só zumbi tava tudo bem, você ia ter acreditado?
- Claro! Por que, você não acredita em zumbi?
- Neneco, dessas coisas míticas eu só acredito em anão.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Jonél

Meu nome é Jonél. Sou maestro do principal coro dos anjos do Paraíso. Não o bairro de São Paulo, que fique claro. Moro no Éden. No Céu. Na Salvação Final. No oposto da Barra Funda. Essa sim, o bairro de São Paulo.
O nome do coro dos anjos é “Afanásio Jazadji é Quase EU”. A idéia do nome foi do próprio DEUS, que gostava muito dos programas do Afanásio no rádio. Durante um tempo, ELE até deixou uma barba parecida com a do Afanásio, em homenagem. Pelo que ouvi falar, desde 82, ELE está em negociações com o Coisa-Ruim para que o Afanásio, quando morrer, vá para o Paraíso. Ainda não chegaram a um consenso.
De volta ao assunto, devo informar que também sou um anjo. Mas não um anjo-canoro, como os outros que fazem parte do coro. Sou um anjo em uma condição especial, conforme explicarei dentro de (dependendo do seu nível de alfabetização ou velocidade de leitura) alguns instantes.
Antes, é importante dizer que fui enviado de volta à Terra por vários motivos. O primeiro, e também o mais importante, é me formar em música. Ainda estou fazendo o curso. O segundo seria impedir que um bacana chamado Austregésilo fosse morto. Deu zebra.
Antes de chegar a esse ponto, quero falar da minha condição de anjo especial. E de porque vim estudar música e, de quebra, proteger o velho Austre.
Na Terra, meu nome muda de Jonél para Joné, já que aqui deixo de ser anjo. Como tive que vir às pressas, não deu para me gerarem por nove meses e aquela coisa toda.
Deus, em sua infinita sabedoria, me mandou de volta direto para dentro do meu caixão. Colocou uma ferramenta ao meu lado, dentro do caixão, para sair de lá sem muita dificuldade e me matricular na escola. E, se desse tempo, salvar o velho.
Devido a problemas operacionais, não voltei como anjo. Ou como humano. Ou mesmo como um dálmata, coisa que era meu sonho desde criança.
Graças a esse lance de Deus me botar de volta no caixão, acabei me tornando um morto-vivo. Meio angelical, meio diferente, é verdade. Mas ainda assim, um morto-vivo.
Não sou um morto-vivo clássico porque sei discernir o certo do errado, tenho certa agilidade, não ando todo trôpego por aí. Sei ler, escrever e falar mais do que duas frases inteiras. Entretanto, infelizmente, não resisto à tentação de comer cérebro. Adoro miolos.
Sobre as aulas de música, a questão é mais simples.
O CHEFÃO sabe – e sempre soube, já que ELE é quem é – que o coro está muito desafinado. ELE sabe também que a única música que ensaiamos, já há anos, está muito ruim.
E a coisa está ruim por vários motivos. Em parte, porque os próprios anjos nunca ouviram a versão original da música que ensaiamos. Em parte, porque nunca fui maestro.
A música que ensaiamos e ensaiaremos pela eternidade é "Like a Virgin", da Madonna.
Quando eu era vivo, era fã da música. Cheguei a fazer muita bobagem por conta disso. Morri, inclusive, devido a essa minha tara. Agora, nem sou mais tão fã. Gosto mesmo é de um belo prato de miolos com molho de tomate e queijo.
De qualquer forma, vim para a Terra para estudar música, fazer o trabalho de conclusão de curso sobre "Like a Virgin" e voltar para o Céu com bagagem suficiente para realizar um bom trabalho no coro.
Quanto ao Austregésilo, a questão é outra.
Sabendo que eu viria à Terra, a Dona Morte pediu encarecidamente que eu evitasse a morte do tal Austregésilo. Ela queria tirar férias justamente na semana da festa que ele seria morto.
Ela não queria passar o trabalho para alguma outra entidade. Da última vez, a Mãe Natureza, que aceitou o trampo porque estava dura, fez tudo errado. Não trouxe as pessoas certas, não teve coragem de matar quase ninguém e ainda criou uma nova espécie de animal. Hoje, esse animal é conhecido como Equidna.
(Este episódio deixou DEUS fulo de raiva. Invariavelmente, a Equidna é apontada como uma das maiores barbeiragens do TODO PODEROSO, ao lado da criação do Ornitorrinco, da falta de calos nas cordas vocais do Chorão e da formação do J. Quest.)
Assim, prometi à Dona Morte que não deixaria ninguém se aproximar do velho. Ela topou e começou a fazer as malas para Cancun. Não sem antes me dar as instruções de como entrar na festa do Austregésilo.
Ela havia feito um acordo com Dercy Gonçalves, conhecida de longa data tanto da morte como do tal Austregésilo. A Dercy, em troca de mais um tempo na Terra, facilitaria minha entrada na festa. Eu me passaria por um primo distante dela e atenderia pelo nome de Jonercy Gonçalves.
A primeira parte do plano funcionou muito bem. Entrei na festa como Jonercy Gonçalves, primo-neto da desbocada comediante. Tive alguns problemas com curiosos, que, em plena festa, me "arrodiaram" e queriam saber, na verdade, qual era a profissão de Dercy. Se era atriz, comediante, dançarina ou aposentada.
Consegui me livrar de todos eles respondendo que ela era paga para falar palavrão na TV. Todos aceitaram a desculpa e me deixaram em paz. Para, como fiquei sabendo depois, incomodar um suposto sobrinho-primo-neto do Miéle. Eles queriam saber, exatamente, qual era a profissão dele.
Em algum momento, até ouvi o tal parente do Miéle, parece que se chamava Daniell Rezende e estava com um sorvete esquisito o tempo todo em uma das mãos, responder que a profissão do tio-avô beberrão famoso era “ser amigo dos outros”. Me convenceu.
De qualquer forma, eu tinha mais o que fazer. Tinha de proteger Austregésilo.
Assim que me desvencilhei de todos, comecei a rodar a festa atrás do velho. Já o tinha visto por fotos, mas ainda não havia visto pessoalmente. Alguns bons minutos de caça depois, meu estômago começou a roncar.
Eu já estava sem comer há alguns dias e na minha cabeça começou a se formar a imagem de um suculento cérebro coberto com molho de tomate e queijo. Neste mesmo instante, eu vi o velho Austregésilo. Ele passou pela minha frente, meio que apressado.
Foi rápido, mas foi o suficiente para eu ver aquilo que acredito ser o crânio mais bonito da minha curta carreira de morto-vivo-angelical. Era uma cabeça ovalada, com um que de austera, que somente poderia conter um dos cérebros mais suculentos que já vi. Comecei a babar.
Tentei me controlar. Fechei os olhos, mas somente vinha à minha mente a cabeça ovalada. Ajudava a aumentar minha fome o perfume do xampu que exalava da cabeça do velho Austregésilo.
O aroma, impregnado no meu olfato, era um misto de Neutrox com babosa. Para traçar um paralelo, Neutrox com babosa está para o olfato-paladarístico de um morto-vivo como molho barbecue está para o de um humano.
Neste momento, percebi que vivia um paradoxo.
Tinha de proteger Austregésilo. Mas, se chegasse perto dele, poderia eu mesmo não resistir aos meus instintos e matá-lo, para depois abocanhar seu cérebro.
Além disso, se alguém o matasse, quem viria buscá-lo? Dona Morte estava, a essa hora, em Cancun, dando mais do que chuchu na cerca.
Se conseguissem matá-lo, o que aconteceria com a Dercy Gonçalves, comigo, com a Dona Morte e com Austregésilo? Por fim, será que, se o crime fosse cometido, alguém se incomodaria se eu desse uma beliscada em seus miolos?
Com muitas dúvidas – entre elas a profissão de Dercy – disparei para a cozinha. Invadi a despensa atrás daquilo que achei que seria a única coisa que poderia me ajudar fisicamente. Miolos. De pão, no caso.
Eles funcionam como carne de soja para mortos-vivos. E, embora eu não gostasse, iria aplacar minha fome e colocar meus pensamentos no rumo certo.
Entre um naco de miolo de pão e outro, que cuidadosamente besuntei com um pouco de creme rinse que achei pelo caminho, ouvi uma confusão em outro local da casa.
Ao que parecia, Austregésilo estava morto.
Peguei uma colher de pau e corri para lá. Se ninguém se importasse, eu iria pegar um pedaço de cérebro de verdade, para comer mais tarde.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Interlúdio 3

- O que foi isso, Cabelo? O cara tava declamando o depoimento?
- É, parece que ele leu tudo no papel. E aquele monte de bolinha? Chapado, o maluco.
- Por isso o saudoso tio Vladimilson sempre dizia: “é melhor acabar com as drogas antes que elas acabem com você”. Lembra do tio Vladimilson, Cabelo?
- Neneco, a gente nunca teve um tio chamado Vladimilson.
- Ah, não?
- Certeza.

(...)

- Bom, devo ter visto isso em outro lugar, então. Mas enfim. Muito estranha essa história do caixão. O que você acha?
- Muito provável que o velho quisesse pregar uma peça em alguém; típico do fdp.
- Será que ele sabia que ia morrer? Será que ele se matou?
- Neneco, qual foi a última vez que você ouviu que alguém se matou com uma facada nas costas?
- Sei lá, minha especialidade são homicídios, não suicídios.
- Sua especialidade é falar merda, nisso você é craque.
- Não enche. Tem mais dois mistérios: Como o cara ficou com lascas de madeira nos dedos de ontem para hoje se ele já tinha terminado o caixão há dois dias?
- Hum, finalmente você disse alguma coisa que presta. E o segundo mistério?
- Por que o cara foi expulso dos Lobinhos?

terça-feira, 24 de julho de 2007

Simeu Mavela

Podem me chamar de Simeu Mavela. Estou muito nervoso com essa situação, pois nunca antes havia escrito um depoimento. Na verdade, é a primeira vez, desde que assinei minha baixa desonrosa dos Lobinhos, que ponho algo no papel. Estou escrevendo isso enquanto espero minha vez de entrar na sala do detetive. Sabe como é, não quero dar vexame quando for a minha vez de entrar no palco. Ainda mais que estranhamente estou com um pouco de dificuldade para articular palavras hoje. Mãos à obra então.
Mas antes vou tomar uma bolinha pra relaxar. Usava muito desse expediente quando dava plantão na caserna, isso de fato ajuda a passar o tempo. Ah, muito melhor. Onde eu estava? Ah, sim, meu depoimento.
Sou um tipo caladão, prefiro agir a falar. Nos últimos tempos, estabeleci uma modesta carpintaria ao longo da estrada principal, bem perto da entrada da mansão do seu Austregésilo. Foi lá que ele me conheceu, quando contratou meus serviços. Era um pedido estranho, mas serviço é serviço e não recuso trabalho. Lembro que ele parou seu Bentley todo pintado como se fosse um quadro do Romero Britto. Não sou conhecedor de arte nem nada, mas é que reconheci a estampa no carro porque tenho uma igualzinha decorando a cortina do meu banheiro. O Velho desceu do carro e depois de pouco papo, pagou adiantado o trabalho. Nunca vi aquilo. O cheque que ele me deu tinha mais zeros que a idade da Dercy e do Niemeyer juntos. Nem se eu trabalhasse um ano para o papa eu seria tão bem pago. Senti que minha chance havia chegado.
Mas isso não foi tudo. Onde eu deixei aquelas bolinhas? Ah, aqui está uma. Hum... que bom. Como eu estava dizendo, seu Austragésilo também me convidou para uma festa, que seria dali a duas semanas. Ele disse ainda que a encomenda teria que ser entregue até a data do convite. Eu falei pra ele não se preocupar, pois o serviço estava em boas mãos. Passei as duas semanas seguintes enfurnado na carpintaria, nem tive tempo de ir à cidade. O sacrifício valera a pena. De fato, eu havia criado uma obra prima. Entreguei o pacote pela manhã na casa do velho e fui à cidade, descontar o cheque e comprar roupas novas, pois a festa seria dali a poucas horas.
Voltei à noite, e encontrei a casa toda iluminada. Havia tantos carrões estacionados que parecia um show-room da Mercedes. Logo na porta, encontrei algo parecido com uma freira, mas tinhas dois metros de altura. A freira bombada estendeu a mão e pegou meu convite. Agradeci me ajoelhando e beijando suas vestes. Assim, de súbito, entrei no salão principal, que me pareceu mais iluminado que uma quermesse no céu. Bandejas voavam com drinques fumegantes, cada um de uma cor. Apanhei quantos pude e entornei tudo ali mesmo. Onde estão essas bolinhas? De repente, eu flanava a poucos passos do chão, como se deslizasse entre os convidados com um Segway dos infernos. Sumi festa adentro.
Estava conversando com uma dama de longos cabelos verdes, encostada num canto da sala. Ela chegava a ser mais calada que eu, mas entendia seu silêncio como um sinal de positivo. Passei a mão por seu corpo e pude sentí-lo úmido como terra molhada. A freira gigante apareceu do nada e agarrou-me no ar, levando-me em direção à porta. Protestei dizendo que antes, ainda queria falar com meu amigo Austrogildo, para dizer-lhe pessoalmente o que eu achava dele. Enquanto a doce freira me levava para fora, pude escutar um sinistro rebuliço na multidão, e alguns olhares se dirigiam para mim e para minha freira gigante. Fui cercado por um bando de pingüins que fediam a vodca e canapés. Senti o chão acelerar violentamente em direção ao meu rosto, até que tudo ficou congelado com o baque. Em câmera lenta, pude ver meu chapa, o velho Astrolábio, repousando no caixão que eu mesmo construíra. Apaguei.
Tenho que parar com essas bolinhas. Só mais essa.
Acordei com gosto de cabo de guarda-chuva na boca. Olhei em volta e estava numa sala, junto com outros convidados da festa. Reconheci alguns deles pelas solas dos sapatos, que se encaixavam perfeitamente nas marcas deixadas nas minhas costelas. Tentei organizar os pensamentos e revirei os bolsos, à procura de pistas. Achei um papel dobrado e imediatamente percebi que era cheque que o velho me dera, que fora recusado pelo caixa do banco. Lembrei que saí do banco muito puto, afinal, havia gasto uma soma considerável para fazer aquele caixão idiota. Acho que também dei uma esticada no bar do Galego antes da festa. Acho até que tomei uns aperitivos, não sei.
Minha situação é delicada, sou uma pessoa simples, não tenho amigos por aqui. Não matei o velho, isso eu posso garantir. Não conhecia a casa, não poderia ter encontrado o sacripanta e dado cabo dele, ainda mais numa festa lotada. Só sei que até aqui, minha contabilidade está negativa. Velho filho da puta! - Posso escrever isso num depoimento? Queria pelo menos reaver meu caixão, mas aproveitaram e deixaram o velho dentro dele por enquanto. Acho que poderia conseguir um bom preço na peça, se eu a colocasse pra vender na beira da estrada. Diabos. Se ao menos aquela linda dama de cabelos de clorofila testemunhasse a meu favor.
Vou terminar por aqui. Acho que contei tudo de relevante que aconteceu essa noite. Mesmo porque, minhas mãos doem. Não sou acostumado a escrever, como já falei, e de ontem pra hoje ainda apareceram umas lascas de madeira fincadas entre minhas unhas. Dói pra burro, acreditem, é como tambolirar numa máquina de escrever, que tivesse pregos em suas teclas. E a dor não passa.
Acho que é por isso que eu consumo tanta bolinha.