terça-feira, 31 de julho de 2007

Gabriel Von Doscht

Olá, me chamo Gabriel Von Doscht e, certamente, vocês já devem me conhecer. Sou um famoso escritor em ascensão no universo da literatura. Meus livros, apesar de não venderem muito, são parcialmente conhecidíssimos. Vi nesta festa uma excelente oportunidade para emplacar o meu novo livro, chamado “Viagem no Tempo for Dummies”, além, é claro, de rever o meu velho amigo de infância, o Austregésilo.
Quando criança Austregésilo tinha os melhores brinquedos, as melhores roupas, os melhores troféus. A inveja que Austregésilo despertava em todos os outros meninos era tão grande que ele teve de ir embora do nosso bairro. Eu nunca mais o vi desde então, por isso, essa festa era muito importante para mim.
Ao chegar na festa fui recepcionado pelo mordomo, ao qual perguntei onde seria o melhor local para montar minha banquinha de autógrafos. O mordomo me indicou a lavanderia da mansão. Um ótimo lugar, segundo ele, para se vender e autografar livros.


Eu na banca de autógrafos. Foto tirada por mim mesmo

Não demorou a aparecer o primeiro comprador, o próprio Austregésilo, que estava passando por ali com uma faca enfiada em suas costas.
- Opa, Austregésilo. Dando uma voltinha?
- Hrruuu... – disse o Austregésilo.
- É sempre bom pegar um ar, né?
Austregésilo continuava a se arrastar, resmungando e ignorando a minha pergunta.
- Austregésilo! Sou eu, o Fimose, lembra?
- Oorhg... – me respondeu.
- Filho da Bernadete, cara. – insisti.
Ele continuou a não me dar atenção. Logo constatei que Austregésilo havia se tornado tudo o que havíamos prometido nunca nos tornarmos: Um maldito velho arrogante com uma faca enfiada nas costas. Isso, de certo modo, me fez ficar muito puto. Tive vontade de enfiar uma faca nas costas daquele crápula, mas não o fiz, visto que ele já tinha uma faca enfiada nas costas. Maldito, sempre um passo à frente de todos. Deixei que fosse embora, ele e sua lustrosa faca enfiada nas costas.
Sempre querendo ser o centro das atenções.
Não demorou muito para chegar o segundo possível primeiro comprador do meu livro. Era um rapaz grande, com um pandeiro em uma mão, um mp3 player na outra e uma camiseta branca com uma enorme mancha vermelha, parecia estar nervoso, procurando por algo. Sorri e puxei conversa.
- Opa, opa, opa. Chegue mais, meu querido. Qual o seu nome?
- Hã... Como? Meu nome? Pra que? – gaguejou.
- Oras, para eu autografar um livro para você, meu amiguinho.
- Na verdade eu não quero o seu livro.
- Não? – decepcionado perguntei.
- Não, não. Eu preciso de uma camiseta limpa. A minha... Bom, a minha tá suja de... de vinho. – explicou-me o rapaz – Por isso vim aqui na lavanderia.
- Bom, mas camisetas eu não tenho. Somente livros e autógrafos.
Vendo que eu não estava ali para brincadeiras, o rapaz disse que compraria um livro e que eu poderia autografá-lo, mas que para isto acontecer eu teria de trocar de camiseta com ele. Claro que eu aceitei sem pestanejar. Instantes depois eu estava usando a camiseta manchada de vermelho.
- Mas então... Qual seu nome? – perguntei.
- Pra que?
- Pra eu autografar, oras.
- Ah... Ronald Rios.
Peguei a caneta, abri um livro e comecei a autografar. Quando levantei os meus olhos o tal Ronald Rios não estava mais lá. Havia se mandando com a minha camisa limpinha.
Fiquei na banquinha o resto da noite e nenhuma alma viva passou por lá para pegar um autógrafo. Eu já estava começando a suspeitar que uma lavanderia não era um local apropriado para uma noite de autógrafos, até que apareceu um sujeito muito estranho, com uma coxa de galinha na mão. Ele olhou para mim, grudou os olhos na mancha da camiseta que eu usava, fez uma cara de “desvendei o crime” e disse:
- Alto lá, meliante. Sou o Detetive Mesquita.
Sorri, peguei a caneta, abri um livro e comecei a autografar.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Interlúdio 4

- Neneco, você viu isso?
- Não consegui despregar o olho.
- O cara tem uma lesma saindo e entrando do ouvido, que nojo.
- Cabelo, não entendi direito. O cara é anjo ou zumbi?
- Pelo que eu entendi anjo-zumbi.
- Ele tá mentindo, Cabelo, isso não existe! Ou é anjo ou é zumbi, os dois juntos não pode.
- Então se fosse só zumbi tava tudo bem, você ia ter acreditado?
- Claro! Por que, você não acredita em zumbi?
- Neneco, dessas coisas míticas eu só acredito em anão.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Jonél

Meu nome é Jonél. Sou maestro do principal coro dos anjos do Paraíso. Não o bairro de São Paulo, que fique claro. Moro no Éden. No Céu. Na Salvação Final. No oposto da Barra Funda. Essa sim, o bairro de São Paulo.
O nome do coro dos anjos é “Afanásio Jazadji é Quase EU”. A idéia do nome foi do próprio DEUS, que gostava muito dos programas do Afanásio no rádio. Durante um tempo, ELE até deixou uma barba parecida com a do Afanásio, em homenagem. Pelo que ouvi falar, desde 82, ELE está em negociações com o Coisa-Ruim para que o Afanásio, quando morrer, vá para o Paraíso. Ainda não chegaram a um consenso.
De volta ao assunto, devo informar que também sou um anjo. Mas não um anjo-canoro, como os outros que fazem parte do coro. Sou um anjo em uma condição especial, conforme explicarei dentro de (dependendo do seu nível de alfabetização ou velocidade de leitura) alguns instantes.
Antes, é importante dizer que fui enviado de volta à Terra por vários motivos. O primeiro, e também o mais importante, é me formar em música. Ainda estou fazendo o curso. O segundo seria impedir que um bacana chamado Austregésilo fosse morto. Deu zebra.
Antes de chegar a esse ponto, quero falar da minha condição de anjo especial. E de porque vim estudar música e, de quebra, proteger o velho Austre.
Na Terra, meu nome muda de Jonél para Joné, já que aqui deixo de ser anjo. Como tive que vir às pressas, não deu para me gerarem por nove meses e aquela coisa toda.
Deus, em sua infinita sabedoria, me mandou de volta direto para dentro do meu caixão. Colocou uma ferramenta ao meu lado, dentro do caixão, para sair de lá sem muita dificuldade e me matricular na escola. E, se desse tempo, salvar o velho.
Devido a problemas operacionais, não voltei como anjo. Ou como humano. Ou mesmo como um dálmata, coisa que era meu sonho desde criança.
Graças a esse lance de Deus me botar de volta no caixão, acabei me tornando um morto-vivo. Meio angelical, meio diferente, é verdade. Mas ainda assim, um morto-vivo.
Não sou um morto-vivo clássico porque sei discernir o certo do errado, tenho certa agilidade, não ando todo trôpego por aí. Sei ler, escrever e falar mais do que duas frases inteiras. Entretanto, infelizmente, não resisto à tentação de comer cérebro. Adoro miolos.
Sobre as aulas de música, a questão é mais simples.
O CHEFÃO sabe – e sempre soube, já que ELE é quem é – que o coro está muito desafinado. ELE sabe também que a única música que ensaiamos, já há anos, está muito ruim.
E a coisa está ruim por vários motivos. Em parte, porque os próprios anjos nunca ouviram a versão original da música que ensaiamos. Em parte, porque nunca fui maestro.
A música que ensaiamos e ensaiaremos pela eternidade é "Like a Virgin", da Madonna.
Quando eu era vivo, era fã da música. Cheguei a fazer muita bobagem por conta disso. Morri, inclusive, devido a essa minha tara. Agora, nem sou mais tão fã. Gosto mesmo é de um belo prato de miolos com molho de tomate e queijo.
De qualquer forma, vim para a Terra para estudar música, fazer o trabalho de conclusão de curso sobre "Like a Virgin" e voltar para o Céu com bagagem suficiente para realizar um bom trabalho no coro.
Quanto ao Austregésilo, a questão é outra.
Sabendo que eu viria à Terra, a Dona Morte pediu encarecidamente que eu evitasse a morte do tal Austregésilo. Ela queria tirar férias justamente na semana da festa que ele seria morto.
Ela não queria passar o trabalho para alguma outra entidade. Da última vez, a Mãe Natureza, que aceitou o trampo porque estava dura, fez tudo errado. Não trouxe as pessoas certas, não teve coragem de matar quase ninguém e ainda criou uma nova espécie de animal. Hoje, esse animal é conhecido como Equidna.
(Este episódio deixou DEUS fulo de raiva. Invariavelmente, a Equidna é apontada como uma das maiores barbeiragens do TODO PODEROSO, ao lado da criação do Ornitorrinco, da falta de calos nas cordas vocais do Chorão e da formação do J. Quest.)
Assim, prometi à Dona Morte que não deixaria ninguém se aproximar do velho. Ela topou e começou a fazer as malas para Cancun. Não sem antes me dar as instruções de como entrar na festa do Austregésilo.
Ela havia feito um acordo com Dercy Gonçalves, conhecida de longa data tanto da morte como do tal Austregésilo. A Dercy, em troca de mais um tempo na Terra, facilitaria minha entrada na festa. Eu me passaria por um primo distante dela e atenderia pelo nome de Jonercy Gonçalves.
A primeira parte do plano funcionou muito bem. Entrei na festa como Jonercy Gonçalves, primo-neto da desbocada comediante. Tive alguns problemas com curiosos, que, em plena festa, me "arrodiaram" e queriam saber, na verdade, qual era a profissão de Dercy. Se era atriz, comediante, dançarina ou aposentada.
Consegui me livrar de todos eles respondendo que ela era paga para falar palavrão na TV. Todos aceitaram a desculpa e me deixaram em paz. Para, como fiquei sabendo depois, incomodar um suposto sobrinho-primo-neto do Miéle. Eles queriam saber, exatamente, qual era a profissão dele.
Em algum momento, até ouvi o tal parente do Miéle, parece que se chamava Daniell Rezende e estava com um sorvete esquisito o tempo todo em uma das mãos, responder que a profissão do tio-avô beberrão famoso era “ser amigo dos outros”. Me convenceu.
De qualquer forma, eu tinha mais o que fazer. Tinha de proteger Austregésilo.
Assim que me desvencilhei de todos, comecei a rodar a festa atrás do velho. Já o tinha visto por fotos, mas ainda não havia visto pessoalmente. Alguns bons minutos de caça depois, meu estômago começou a roncar.
Eu já estava sem comer há alguns dias e na minha cabeça começou a se formar a imagem de um suculento cérebro coberto com molho de tomate e queijo. Neste mesmo instante, eu vi o velho Austregésilo. Ele passou pela minha frente, meio que apressado.
Foi rápido, mas foi o suficiente para eu ver aquilo que acredito ser o crânio mais bonito da minha curta carreira de morto-vivo-angelical. Era uma cabeça ovalada, com um que de austera, que somente poderia conter um dos cérebros mais suculentos que já vi. Comecei a babar.
Tentei me controlar. Fechei os olhos, mas somente vinha à minha mente a cabeça ovalada. Ajudava a aumentar minha fome o perfume do xampu que exalava da cabeça do velho Austregésilo.
O aroma, impregnado no meu olfato, era um misto de Neutrox com babosa. Para traçar um paralelo, Neutrox com babosa está para o olfato-paladarístico de um morto-vivo como molho barbecue está para o de um humano.
Neste momento, percebi que vivia um paradoxo.
Tinha de proteger Austregésilo. Mas, se chegasse perto dele, poderia eu mesmo não resistir aos meus instintos e matá-lo, para depois abocanhar seu cérebro.
Além disso, se alguém o matasse, quem viria buscá-lo? Dona Morte estava, a essa hora, em Cancun, dando mais do que chuchu na cerca.
Se conseguissem matá-lo, o que aconteceria com a Dercy Gonçalves, comigo, com a Dona Morte e com Austregésilo? Por fim, será que, se o crime fosse cometido, alguém se incomodaria se eu desse uma beliscada em seus miolos?
Com muitas dúvidas – entre elas a profissão de Dercy – disparei para a cozinha. Invadi a despensa atrás daquilo que achei que seria a única coisa que poderia me ajudar fisicamente. Miolos. De pão, no caso.
Eles funcionam como carne de soja para mortos-vivos. E, embora eu não gostasse, iria aplacar minha fome e colocar meus pensamentos no rumo certo.
Entre um naco de miolo de pão e outro, que cuidadosamente besuntei com um pouco de creme rinse que achei pelo caminho, ouvi uma confusão em outro local da casa.
Ao que parecia, Austregésilo estava morto.
Peguei uma colher de pau e corri para lá. Se ninguém se importasse, eu iria pegar um pedaço de cérebro de verdade, para comer mais tarde.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Interlúdio 3

- O que foi isso, Cabelo? O cara tava declamando o depoimento?
- É, parece que ele leu tudo no papel. E aquele monte de bolinha? Chapado, o maluco.
- Por isso o saudoso tio Vladimilson sempre dizia: “é melhor acabar com as drogas antes que elas acabem com você”. Lembra do tio Vladimilson, Cabelo?
- Neneco, a gente nunca teve um tio chamado Vladimilson.
- Ah, não?
- Certeza.

(...)

- Bom, devo ter visto isso em outro lugar, então. Mas enfim. Muito estranha essa história do caixão. O que você acha?
- Muito provável que o velho quisesse pregar uma peça em alguém; típico do fdp.
- Será que ele sabia que ia morrer? Será que ele se matou?
- Neneco, qual foi a última vez que você ouviu que alguém se matou com uma facada nas costas?
- Sei lá, minha especialidade são homicídios, não suicídios.
- Sua especialidade é falar merda, nisso você é craque.
- Não enche. Tem mais dois mistérios: Como o cara ficou com lascas de madeira nos dedos de ontem para hoje se ele já tinha terminado o caixão há dois dias?
- Hum, finalmente você disse alguma coisa que presta. E o segundo mistério?
- Por que o cara foi expulso dos Lobinhos?

terça-feira, 24 de julho de 2007

Simeu Mavela

Podem me chamar de Simeu Mavela. Estou muito nervoso com essa situação, pois nunca antes havia escrito um depoimento. Na verdade, é a primeira vez, desde que assinei minha baixa desonrosa dos Lobinhos, que ponho algo no papel. Estou escrevendo isso enquanto espero minha vez de entrar na sala do detetive. Sabe como é, não quero dar vexame quando for a minha vez de entrar no palco. Ainda mais que estranhamente estou com um pouco de dificuldade para articular palavras hoje. Mãos à obra então.
Mas antes vou tomar uma bolinha pra relaxar. Usava muito desse expediente quando dava plantão na caserna, isso de fato ajuda a passar o tempo. Ah, muito melhor. Onde eu estava? Ah, sim, meu depoimento.
Sou um tipo caladão, prefiro agir a falar. Nos últimos tempos, estabeleci uma modesta carpintaria ao longo da estrada principal, bem perto da entrada da mansão do seu Austregésilo. Foi lá que ele me conheceu, quando contratou meus serviços. Era um pedido estranho, mas serviço é serviço e não recuso trabalho. Lembro que ele parou seu Bentley todo pintado como se fosse um quadro do Romero Britto. Não sou conhecedor de arte nem nada, mas é que reconheci a estampa no carro porque tenho uma igualzinha decorando a cortina do meu banheiro. O Velho desceu do carro e depois de pouco papo, pagou adiantado o trabalho. Nunca vi aquilo. O cheque que ele me deu tinha mais zeros que a idade da Dercy e do Niemeyer juntos. Nem se eu trabalhasse um ano para o papa eu seria tão bem pago. Senti que minha chance havia chegado.
Mas isso não foi tudo. Onde eu deixei aquelas bolinhas? Ah, aqui está uma. Hum... que bom. Como eu estava dizendo, seu Austragésilo também me convidou para uma festa, que seria dali a duas semanas. Ele disse ainda que a encomenda teria que ser entregue até a data do convite. Eu falei pra ele não se preocupar, pois o serviço estava em boas mãos. Passei as duas semanas seguintes enfurnado na carpintaria, nem tive tempo de ir à cidade. O sacrifício valera a pena. De fato, eu havia criado uma obra prima. Entreguei o pacote pela manhã na casa do velho e fui à cidade, descontar o cheque e comprar roupas novas, pois a festa seria dali a poucas horas.
Voltei à noite, e encontrei a casa toda iluminada. Havia tantos carrões estacionados que parecia um show-room da Mercedes. Logo na porta, encontrei algo parecido com uma freira, mas tinhas dois metros de altura. A freira bombada estendeu a mão e pegou meu convite. Agradeci me ajoelhando e beijando suas vestes. Assim, de súbito, entrei no salão principal, que me pareceu mais iluminado que uma quermesse no céu. Bandejas voavam com drinques fumegantes, cada um de uma cor. Apanhei quantos pude e entornei tudo ali mesmo. Onde estão essas bolinhas? De repente, eu flanava a poucos passos do chão, como se deslizasse entre os convidados com um Segway dos infernos. Sumi festa adentro.
Estava conversando com uma dama de longos cabelos verdes, encostada num canto da sala. Ela chegava a ser mais calada que eu, mas entendia seu silêncio como um sinal de positivo. Passei a mão por seu corpo e pude sentí-lo úmido como terra molhada. A freira gigante apareceu do nada e agarrou-me no ar, levando-me em direção à porta. Protestei dizendo que antes, ainda queria falar com meu amigo Austrogildo, para dizer-lhe pessoalmente o que eu achava dele. Enquanto a doce freira me levava para fora, pude escutar um sinistro rebuliço na multidão, e alguns olhares se dirigiam para mim e para minha freira gigante. Fui cercado por um bando de pingüins que fediam a vodca e canapés. Senti o chão acelerar violentamente em direção ao meu rosto, até que tudo ficou congelado com o baque. Em câmera lenta, pude ver meu chapa, o velho Astrolábio, repousando no caixão que eu mesmo construíra. Apaguei.
Tenho que parar com essas bolinhas. Só mais essa.
Acordei com gosto de cabo de guarda-chuva na boca. Olhei em volta e estava numa sala, junto com outros convidados da festa. Reconheci alguns deles pelas solas dos sapatos, que se encaixavam perfeitamente nas marcas deixadas nas minhas costelas. Tentei organizar os pensamentos e revirei os bolsos, à procura de pistas. Achei um papel dobrado e imediatamente percebi que era cheque que o velho me dera, que fora recusado pelo caixa do banco. Lembrei que saí do banco muito puto, afinal, havia gasto uma soma considerável para fazer aquele caixão idiota. Acho que também dei uma esticada no bar do Galego antes da festa. Acho até que tomei uns aperitivos, não sei.
Minha situação é delicada, sou uma pessoa simples, não tenho amigos por aqui. Não matei o velho, isso eu posso garantir. Não conhecia a casa, não poderia ter encontrado o sacripanta e dado cabo dele, ainda mais numa festa lotada. Só sei que até aqui, minha contabilidade está negativa. Velho filho da puta! - Posso escrever isso num depoimento? Queria pelo menos reaver meu caixão, mas aproveitaram e deixaram o velho dentro dele por enquanto. Acho que poderia conseguir um bom preço na peça, se eu a colocasse pra vender na beira da estrada. Diabos. Se ao menos aquela linda dama de cabelos de clorofila testemunhasse a meu favor.
Vou terminar por aqui. Acho que contei tudo de relevante que aconteceu essa noite. Mesmo porque, minhas mãos doem. Não sou acostumado a escrever, como já falei, e de ontem pra hoje ainda apareceram umas lascas de madeira fincadas entre minhas unhas. Dói pra burro, acreditem, é como tambolirar numa máquina de escrever, que tivesse pregos em suas teclas. E a dor não passa.
Acho que é por isso que eu consumo tanta bolinha.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Interlúdio 2

- Barriga de aluguel, um podólogo gay, um santuário pro Frota, chantagens... Too much information; Neneco, essa história está começando a feder.
- Er...
- Neneco?
- Desculpa, Cabelo, acho que o cheiro é minha culpa.
- Neneco!
- É esse blend de tangerina com folhas de repolho que acho que não caiu bem.
- Caraio, Neneco! Cê ta fumando repolho?!
- Estou em busca do blend perfeito, Cabelo. É uma busca transcendental, respeita.
- Sei... Mas esse papo de fantasia de chacrete não colou. Aposto que essa menina é GP.
- Você acha que ela participa de corrida de carros?
- Garota de Programa, anta! A profissão mais antiga do mundo. Eu disse que tinha visto uma striper, era ela.
- Hum, eu gostei dela, será que ela cobra caro?

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Margarida W.

Acordei com a estranha sensação de ter um chiclete grudado na testa. E realmente havia.
Enquanto tentava lembrar como ele havia parado ali (e também pensava em um modo de removê-lo), notei um pedaço de papel em cima do criado mudo.
Tom era um criado dedicado. E já que não falava, a discrição personificada. Perdeu a fala em um estranho acidente mal explicado envolvendo uma cabra, uma lixa de unhas e azulejo moído. Mas não estou aqui para falar de Tom.
Era um bilhete de Austregésilo. Queria falar comigo sobre assunto confidencial, com urgência! Daria uma festa logo mais a noite e minha presença era importante. Tudo bem que ele sempre foi um velho de hábitos peculiares, mas tratar de assuntos importantes (e principalmente confidenciais!) em festas... ora!
Mas não foi isso que me deixou inquieta. Ele havia jurado que não queria me ver nem vestida de chacrete, e agora me convida para uma festa.
Nossos problemas pessoais começaram quando Austregésilo me contratou para ser barriga de aluguel, seis anos atrás. Naquele momento ele se dizia apaixonado por seu podólogo. Só que na verdade o que queria mesmo (já que sofria constantemente com problemas nos pés) era o podólogo ao seu lado 24 horas por dia, sem custos adicionais. Mão de vaca.
Por outro lado, o podólogo não sabia das intenções de Austregésilo em relação a ele. E o que nenhum dos dois sabia é que eu não posso ter filhos. Uma história um pouco confusa que tinha como base o seguinte plano de Austregésilo:
Eu saíria algumas vezes com Igor, o podólogo. Numa dessas saídas eu engravidaria. Ficaria calada até o quinto mês e quando revelasse meu estado começaria a reclamar falta de condições para cuidar da criança. Então, Austregésilo me ofereceria apoio financeiro e sua casa para que eu ficasse até a criança nascer.
Igor havia acabado de se formar, era órfão e completou os estudos com ajuda governamental. Só restaria a ele aceitar a ajuda do velho. Após o parto, eu abandonaria casa e criança e pegaria a significativa importância que ele havia me prometido. Os dois se casariam na Espanha e adotariam a criança.
Só que, como eu disse, eles não sabiam que eu não posso ter filhos. Um mês se passou, dois, e Austregésilo começou a me cobrar a criança. Não tardou para que ele colocasse um detetive atrás de mim e descobrisse tudo. Foi aí que a sorte arreganhou os dentes pra mim.
Em uma noite, daquela mesma semana, saí para comer em uma birosca perto do meu apê. E quem eu vejo entrando em uma casinha muito suspeita? Sim, ele mesmo. Não demorou muito para que eu fizesse contato com alguém daquela casa e uns drinks depois fiquei sabendo de tudo que se passava lá.
Austregésilo mantinha naquele lugar uma espécie de santuário para Alexandre Frota. Bonecos de cera importados da Inglaterra, roupas do ator, gravações, fotos, entre outras coisas compunham o local. Mas tudo devia ser mantido no mais absoluto sigilo, por questões comerciais. O velho fechava muitos contratos importantes, naquela época, e a descoberta de seu pequeno hobbie poderia arruinar alguns deles.
Descobri também que ele enganara um ingênuo mendigo que rondava o local, dando a ele um saquinho cheio de Viagra dizendo se tratar de 'pílulas para Smurfização'. O homem foi encontrado dias depois totalmente duro da cabeça aos pés. E ele mantinha esse homem como estátua, vestindo roupas que Frota usou em um de seus últimos filmes, no hall de entrada do santuário.
Após conseguir algumas provas fui à mansão disposta a fechar um acordo. Ele esquecia a minha pequena mentira e eu esquecia o seu pequeno museu e o crime cometido. Negócio fechado com a condição de que eu nunca mais aparecesse. E ainda ganhei uma boa quantia pra calar o bico.
E era esse homem que queria me ver a noite. Após almoçar e cumprir alguns compromissos que tinha a tarde, quase me esqueci de nosso encontro. E teria esquecido se não fosse um embrulho que chegou para mim. Dentro dele havia uma Fantasia Celebration de chacrete e um bilhete dizendo que ele havia esquecido de avisar que era uma festa a fantasia.
Parecia piada, mas resolvi aceitar. Quando terminei de me vestir e percebi que os sapatos estavam apertados, quase tive certeza de que se tratava de uma piada. Ao chegar a festa minhas suspeitas se confirmaram. Eu era a única fantasiada. Concluí que Austregésilo já estava ficando gagá e clichê.
Finalmente nos encontramos, ele riu e subimos até o escritório. Conversamos amenidades até ele tocar naquele assunto. Me disse que estavam escrevendo uma biografia sobre sua vida e era bom que eu não esquecesse o nosso pacto. Alceu, o biógrafo, estava na festa e procurava um grande furo para alavancar as vendas.
Pedi mais dinheiro para ficar calada, ao que ele recusou. Discutimos por um tempo até que um silêncio pairou no ar. Austregésilo me expulsou de seu escritório e também de sua casa. Eu precisava continuar naquela festa pra saber qual era a do biógrafo. Quem sabe se ele pagasse... Desci para o aposento dos empregados (sem que me vissem, claro) e consegui um uniforme com Fifi, a camareira.
Fifi não morria de amores pelo patrão, pois o achava muito parecido com José Lewgoy e isso a assustava um bocado. Ficamos muito amigas na época em que frequentei a casa. Vesti o uniforme, tirei a maquiagem e facilmente me misturei aos empregados.
Não foi difícil descobrir quem era Alceu, o biógrafo. Escutando um pouco daqui, um pouco dali, descobri que ele era o homem que discutia modos de preparar joelho de porco com outro convidado. Tentei me manter perto durante toda a noite. E teria conseguido se não fosse Igor, o podólogo. Ele me arrastou até o jardim e queria que discutíssemos nossa rápida relação ali mesmo, seis anos depois.
Eu sempre gostei dele e não foi difícil começar a falar tudo o que aconteceu. Falei muito, incluindo o fatídico caso de Viagra. Ouvimos passos e percebemos que havia outra presença no jardim. Não pudemos ver quem era, mas Igor, o podólogo, saiu correndo atrás. Eu aproveitei para procurar Alceu, o biógrafo.
Não o vi mais durante todo o resto da festa. Já ia pegar minhas coisas para ir embora, quando noticiaram que Austregésilo tinha ido comer capim pela raiz. No fundo eu achei merecido, mas na hora fiz uma cara de pesar.
Peguei de volta minha Fantasia Celebration e fiquei na sala com os outros. Jogamos uma partida de Banco Imobiliário enquanto o detetive que Cabelo, o mordomo, chamou não chegava. Após colocar a terceira casa da Av. Rebouças, Igor, o podólogo, me perguntou, sem que os outros ouvissem:
- Austregésilo foi para o céu?
Olhei para meus companheiros de jogo. Todos com um olhar competitivo e semblante de algo a esconder. Balancei a cabeça e respondi:
- Eu duvido muito.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Interlúdio 1


- Ok, Cabelo. Sua história eu já conheço. Agora manda o primeiro procrastinado entrar.
- O primeiro o quê?
- O primeiro procrastinado, pô.
- Neneco, você sabe o que é procrastinado?
- Não é o mesmo que “suspeito”?
- Não, porra!
- E o que é então?
- É gente deitada de bruços. Cruzes, como você é burro.



terça-feira, 17 de julho de 2007

Cabelo

Meu nome é Cabelo e eu sou o mordomo da casa.
Na verdade, claro que meu nome não é Cabelo, é só apelido. Mas é daqueles apelidos universais, que passam a fazer parte da pessoa. Sabe como é, eram os anos 70 e eu tinha uma juba de responsa. Agora não sobrou muita coisa, virou ironia. Muito pouca gente conhece meu nome verdadeiro, Thelonious. Nada a ver com o jazzista, meus pais nem gostavam de jazz, acho que foi pra me sacanear mesmo. Minha mãe tinha muito senso de humor, uma vez quebrou um pau de macarrão na cabeça do meu pai e ficou rindo por horas.
Mas têm nomes piores; minha irmã, por exemplo, chama Tênia. Era pra ser uma homenagem para minha avó Tânia, mas meu pai estava de pileque quando foi no cartório registrar. A Tênia puxou o senso de humor da minha mãe, tacou ácido no nariz de um cara que perguntou se ela era Solium ou Saginata.
Bom, mas isso não vem ao caso. É que eu estou nervoso e quando fico assim começo a tergiversar. Que nem no ginásio, quando o diretor me chamou na sala dele porque me pegaram fumando no banheiro e eu acabei revelando todo o esquema que a gente tinha de roubo de provas antes de falar oi. O pessoal da minha classe que não reagiu bem, me deixaram preso no armário um fim-de-semana inteiro. E agora essa merda desse velho morto.
Vou tentar começar de novo. Eu sou o mordomo da casa, ontem teve essa festa, veio um monte de gente que eu nunca tinha visto e o velho acabou assassinado. É óbvio que está todo mundo me olhando como se eu fosse o culpado; a culpa é sempre do mordomo até prova em contrário. O mordomo é uma espécie de judeu das profissões, o cara pode morrer de tétano que com certeza vai ter alguém culpando o mordomo pela ferrugem do prego. O sindicato devia pedir para a ONU dar um país para a gente. Sei lá, talvez a Uganda, um lugar onde os mordomos finalmente pudessem viver em paz, entre os seus. Se deu certo com Israel...
Mas voltemos ao velho. O Seu Austregésilo era um baita filho da puta, que ninguém duvide disso. Inclusive dizem que sua mãe antes de dormir dizia “enfim juntos” para os próprios joelhos. Não vou enganar ninguém dizendo que estou triste pela morte do velho. Acho até que já foi tarde, com todas as suas esquisitices. O desgraçado me obrigava a jogar War com ele por dias seguidos! Ele jogava com cinco cores e eu só com uma, e se mesmo assim eu estivesse ganhando, ele dava um jeito de bagunçar o tabuleiro gritando: “ataque kamikaze”. Perdi a conta de quantas vezes tive vontade de matar o desgraçado. Mas dessa vez não fui eu, juro!
O fato é que se deixar isso na mão da polícia eu estou fodido. Ainda mais que provavelmente quem vai pegar o caso é o delegado Palhares e ele não vai com a minha cara já faz tempo. Nós já tivemos vários desacordos sobre questões de direito de propriedade, se é que vocês me entendem. Discutíamos muito também sobre a aplicação das leis, principalmente as da física. É que, melhor confessar logo, eu não sou só o mordomo da casa. Eu fazia alguns servicinhos extras para o Austregésilo de vez em quando; como convencer gentilmente alguns associados dele a pagarem dívidas vencidas. Não tenho culpa que algumas pessoas tenham ossos tão frágeis.
Como dizia aquele cara: festa estranha, gente esquisita. Já trabalho para o velho faz doze anos, mas mesmo assim tinha muita gente nessa festa que eu nunca vi. Pelo que eu sei, o velho chamou várias pessoas com quem tinha que acertar contas antigas. Um grupinho bem heterogêneo: empresários, jogadores de pôquer, agiotas, roqueiros...
Eu fiquei rodando entre os convidados. Esse é meu único álibi, fiquei o tempo todo no andar de baixo, mas dependo de gente de pouca confiança para confirmar meus movimentos. Lembro de ter visto um cara oferecendo um drink para uma samambaia, de ter passado uma cantada numa striper, ou pelo menos uma garota que eu achei que era striper; e de um cara que passou a mão na minha bunda sem pedir permissão, o que me deixou muito chateado.
Tinha um rapaz sorridente que parecia estar em dois lugares ao mesmo tempo, talvez um ilusionista; e um outro que parecia ter uma lesma saindo do ouvido. Tinha um velho que jurava ter sido um imitador de Michael Jackson em outra encarnação e juntou um grupinho a sua volta enquanto tentava reproduzir o moonwalk.
Fui eu que encontrei o cadáver já perto do fim da festa. Foi a primeira vez na noite que fui para o segundo andar. A primeira idéia que me veio à cabeça foi chamar o Neneco. Eu sei que não foi uma idéia que se possa dizer: “supimpa, que idéia genial!”. Mas o que se vai fazer? É minha única chance de descobrir o assassino antes do Palhares me colocar no pau-de-arara. Eu e Neneco temos que desvendar esse mistério o mais rápido possível!